Umberto Eco queixou-se há dias que as redes sociais deram voz aos imbecis – aqueles que antes (refere aristocraticamente) eram logo silenciados. Eu não disputo que se digam muitas imbecilidades nas redes sociais, e às vezes chego mesmo a perguntar-me como posso partilhar a espécie humana com alguns dos seus autores. Mas, em boa verdade, nos meios de comunicação tradicionais também se lêem pedaços de opiniões que quase nos fazem simpatizar com o conceito de autocensura.

Vejamos os indignados úteis que por estes dias se têm revoltado contra os supostos abusos da investigação judicial sobre Sócrates. Porventura nos intervalos da medicação para a esquizofrenia, vêem protestar por Sócrates estar preso preventivamente há seis meses sem acusação – quando foi o próprio Sócrates, entre outros, que decidiu como bons estes prazos para a investigação e prisão preventiva. Nós sabemos que ao gigante político não se podem aplicar as leis que o gigante decidiu para o povaréu. Mas fica tão mal assumir claramente que afinal todas as pessoas são iguais mas umas são mais iguais que outras. Muitos destes indignados, a seguir, levam a coerência ao ponto de apoiar com entusiasmo António Costa ou os seus derivados à esquerda (todos a caminhar para uma feliz coligação de radicais inimigos do capitalismo e da aritmética, como em Madrid ou em Barcelona) – que foi ministro da Justiça e nada fez para extirpar do país tal ignomínia que tanto os aflige.

Temos também os embevecidos que cantam loas à ‘coragem’ de Sócrates por preferir ficar preso. (E preferiu? Ou julgou que ganharia o braço de ferro e iria para casa sem pulseira eletrónica?) Como se coragem fosse uma característica redentora do que quer que seja. Bonnie e Clyde não ficaram conhecidos por sucumbirem ao medo. Livros foram escritos e filmes realizados sobre criminosos imaginativos e temerários (e bem mais apelativos que Sócrates). É mais útil verificar como se usa a coragem do que simplesmente ser corajoso.

E ofereço-vos a minha preferida dos últimos tempos: a CONFAP (Confederação Nacional de Associações de Pais) propõe que os alunos tenham só um mês de férias. Isso mesmo: a vida das crianças seria escola e nada mais do que escola. Claro que se esta fosse uma opinião de um maluquinho das redes sociais ninguém estranharia. Mas vem de uma associação que supostamente representa os pais dos alunos e até dá palpites para as decisões das políticas educativas e os meios de comunicação social (que, diz-se, calam os imbecis) dão-lhe eco.

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Eu, por mim, aplaudo. É sempre bom ver como pessoas exprimem opiniões estrambólicas com o peito insuflado de quem diz evidências. Quebra a rotina e entretém. Os defensores de Sócrates ofendem-se muito com os supostos abusos que, a existirem, são também da autoria de Sócrates; e encandeiam-se com tamanha coragem. Mas, curiosamente, não encontram dentro de si nenhuma indignação para um primeiro-ministro que recebia presentes de vários milhares de euros – que estes não foram ‘empréstimos’ –, na forma de viagens a Veneza, de alguém a quem ao mesmo tempo o seu governo dava muito dinheiro a ganhar. São indignações seletivas.

E os senhores da CONFAP também devem ser congratulados pela coragem (cá está novamente) de quererem reproduzir com as nossas crianças os métodos de ensino soviéticos e maoistas. Nesses bons regimes considerava-se um perigo que as crianças estivessem expostas à família (que lhes poderia transmitir sabe-se lá que tenebrosas ideias direitistas), pelo que cabia ao Estado formá-los e educá-los para serem futuros revolucionários decentes e amarem mais o partido do que os suspeitos progenitores. Os internatos eram a solução ideal. Na China havia mesmo jardins de infância em regime de internato. E vejam lá como agora os alunos das escolas de Shanghai se distinguem internacionalmente.

Mas, ó CONFAP, não deixa de ser arriscado entregar os filhos um mês inteiro aos pais. Os petizes podem vir com saudades e não largar mãe e pai, e imaginam a canseira que seria: pais a necessitarem de descansar nas férias mas filhos excitados a exigirem atenção? Pensando bem, uns dias em casa pelo Natal são mais que suficientes para colmatar essa pieguice que são as necessidades afetivas das crianças. Quem sabe os pais, desta forma desimpedidos, não se dedicariam à atividade patriótica de aumentar a natalidade.

Eu, reconheço, tenho dificuldades perante a proposta da CONFAP. Provavelmente será por estar muito condicionada nas minhas visões burguesas sobre as relações humanas – e, lá está, a necessitar que coloquem os meus filhos à distância desta influência perniciosa que exerço sobre eles. Por minha culpa, minha tão grande culpa, sou individualista e não amo o coletivo. Em todo o caso, mesmo reconhecendo eu as minhas limitações, há desconfianças que não me abandonam.

Se quem protege Sócrates claramente o faz por cegueira ideológica ou por não querer reconhecer que defendeu um político amoral quando já se via às escâncaras os malefícios que infligia à democracia, com os senhores da CONFAP outra dúvida se recusa a abandonar os meus circuitos cerebrais. Será possível que os dirigentes da CONFAP sejam tão pais quanto Mário Nogueira é professor?