Ninguém pode ficar verdadeiramente surpreendido com a cavalgada em curso contra as bases da economia de mercado e contra alegados “ricos”. É essa é a matriz ideológica do Bloco de Esquerda e do PCP e, verdade seja dita, eles nunca o esconderam. Querem nacionalizar os sectores mais importantes e o mais que vier atrás deles, fazer do Estado o actor principal da economia, acabar com o mercado de capitais, destruir grupos económicos privados, colocar os sindicatos afectos a dirigir as empresas, retirar o país do euro, levantar barreiras proteccionistas para bens, serviços e capital, não pagar pelo menos parte da dívida pública, proibir negócios novos e inovadores para proteger os antigos que recusam adaptar-se, impedir qualquer avaliação de mérito que seja consequente para a carreira e salário dos trabalhadores, etc.

Nada disto é novo e está abundantemente documentado nos programas, manifestos de orientação ideológica e intervenções públicas diárias. O que é novo é que esses partidos passaram, desde o final do ano passado, a fazer parte da solução governativa pela mão do PS e de António Costa. E se esse poder e influência lhes foi dado, Bloco e PCP nada mais estão a fazer do que a exercê-los. Cada vez com mais confiança, levando cada dia mais longe o caderno reivindicativo do qual o Governo está refém.

Até agora discutíamos medidas avulsas como o aumento de rendimentos para grupos eleitorais mais importantes, a reposição dos poderes sindicais em áreas fundamentais como os transportes e educação ou o fim de contratos de associação com escolas privadas. Agora entramos na discussão sobre o regime de organização económica em vigor no país.

Mariana Mortágua, que já se substitui ao ministro das Finanças no anúncio de novos impostos, colocou precisamente aí a discussão no sábado, no palco de uma conferência dos socialistas.

Afirmar que “do ponto de vista prático, a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro” é muito mais do que defender a criação de um novo imposto sobre o património imobiliário ou uma alegada progressividade do IMI. A frase é um verdadeiro tratado. “Perder a vergonha” porque, de facto, é preciso descaramento. “Ir buscar”, como um saque. “A quem está a acumular dinheiro”, como se fosse um crime criar riqueza e fazer poupanças.

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É um sério aviso a todos os que tenham feito poupanças legítimas e dentro da lei, fruto de vidas de trabalho e carreiras e empresas bem sucedidas, sejam eles próprias ou de antepassados familiares – porque os outros, sejam eles banqueiros, ex-governantes, autarcas ou empresários são uma minoria e são casos de polícia e não de política fiscal. Acumular poupanças em Portugal para quê, se os partidos que apoiam o Governo estão a perder a vergonha para vir cá buscá-las?

Isso ficou claro quando a deputada do BE desafiou a plateia: “cabe ao PS pensar sobre o que representa o capitalismo e até onde está disposto a ir para constituir uma alternativa global ao sistema capitalista”.

Que Mariana Mortágua se sinta suficientemente irresponsável para pedir a mudança de regime económico sem medir consequências não é uma surpresa. Chocante é que a plateia, composta pelos socialistas que nos governam, tenha irrompido em aplausos.

Será ignorância colectiva sobre o que significam aquelas palavras? Será falta de sentido crítico, confundido com simpatia e diplomacia para com o parceiro de governação? É falta de memória? É o espírito de sobrevivência num poder que depende da boa vontade do Bloco?

Este PS é o mesmo que defende a economia de mercado, que diz querer criar condições para o crescimento, o investimento e o emprego? É o que faz juras à integração europeia? É o mesmo de José Sócrates, que promoveu a engorda de grupos privados em negócios com o Estado? É o mesmo de António Guterres, que abriu a economia, internacionalizando-a, e privatizou como nenhum outro bancos, a EDP ou a PT? É o mesmo de Mário Soares, que em 1974 e 75 lutou precisamente contra a instauração do regime económico inspirado no modelo soviético de que o Bloco e o PCP são os herdeiros políticos? É aquele que na primeira década de democracia lidou com as consequências das nacionalizações cegas feitas numa madrugada e da economia estatizada, as bolsas de fome e pobreza na Península de Setúbal, o trabalho infantil nas indústrias tradicionais, uma inflação de 30% que penalizava sobretudo os mais pobres e um país subdesenvolvido?

Dá ideia que, antes de mais nada, o PS está a perder o respeito por si próprio em nome do projecto de poder do seu líder. Mas isso terá consequências para o país. O que se começa a desenhar nada tem a ver com justiça ou progressividade fiscal. É um esbulho ideologicamente motivado que ignora que o principal problema do país é a falta de capital para investir, não é o seu excesso. É a falta de grupos e indivíduos que tenham dinheiro e estejam disponíveis a arriscar para lançar ou apoiar novos negócios e empresas, criando emprego.

Este caminho é um desencentivo à poupança e à acumulação de capital com escala suficiente para se multiplicar. No país de Mortágua e dos socialistas que a aplaudem não há espaço para as Sonaes, as Semapas, as Galps, as Jerónimos Martins, as Iberomoldes e os milhares de empresas que só continuarão a sê-lo se continuarem a investir, a modernizar-se e a aumentar a escala para competir globalmente, porque o país é pequeno em tamanho mas, sobretudo, em sensatez, como se está a ver. E esse investimento exige accionistas com capital, que é coisa muito rara entre nós. A alternativa é o endividamento mas esse já experimentámos. Os socialistas, mais uma vez, sabem o país que deixaram em 2011.

Desincentivar a acumulação de capital e destruir o pouco que resta da confiança dos agentes económicos nas regras do Estado é caminho certo para novo desastre.

Mas são assim as derivas ideológicas radicais. Esquecem as regras básicas da economia e acham que podem inverter a lei da gravidade com um decreto-lei revolucionário.

Outro exemplo? Eis, palavra a palavra, a defesa que Mariana Mortágua fez do novo imposto sobre património imobiliário e da alegada falta de impacto económico: “O investimento imobiliário não conta para o PIB. Se eu comprar uma casa eu não estou a contribuir para o investimento no PIB. A casa já foi construída. Eu estou a comprar um bem que já foi investido. Portanto, a ideia de que quem vem a Portugal comprar casas está a contribuir para o investimento não é verdade. Isso contribui zero para o PIB. Não estão a construir, não estão a criar riqueza nem capital fixo, estão a comprar um bem que já foi construído e que já existe”. Foi assim, e a máquina de propaganda do Governo gostou tanto que se apressou a divulgar o vídeo com esta declaração nas redes sociais. No modelo económico de Mariana Mortágua, que apaixona o PS, a economia vai disparar se sucessivamente construirmos e demolirmos prédios, fabricarmos e destruirmos sapatos, calças ou Trabants. Para quê vendê-los, se já entraram nas estatísticas? Como é que nunca ninguém se lembrou deste plano, devidamente desenhado por um comité de planificação económica?

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com