Face aos grandes filósofos, a questão não é nunca a de se ser “por” ou “contra”. Porque as questões que eles põem se situam num plano mais profundo do que aquele em que as vulgares discordâncias se colocam. Não porque as filosofias se situem numa esfera separada e imune à realididade, mas exactamente porque iluminam essa realidade de um modo sempre novo. Não paramos nunca de descobrir, por exemplo, Platão e Aristóteles, e não apenas no que tem a ver com a articulação interna do seu pensamento (uma ocupação que, somando tudo, fica para os profissionais da coisa), mas também, e até principalmente, por causa da incidência do seu pensamento no que respeita às nossas ocupações quotidianas. Não se pode, sem puerilidade, ser “por” ou “contra” os grandes filósofos porque o que eles dizem tem, directa ou indirectamente, relação com a vida do nosso dia a dia sob o modo de interrogações que são mesmo perenes.

Esta introdução um bocadinho esotérica tem a ver com o objecto deste artigo, um breve olhar sobre os dois últimos livros de Diogo Pires Aurélio, Maquiavel & Herdeiros, de 2012, e O mais natural dos regimes. Espinosa e a democracia, de 2014 (ambos publicados pela Temas e Debates / Círculo dos Leitores). São dois livros que resultam de décadas de reflexão sobre a filosofia política, em especial sobre a filosofia política dos grandes autores do século XVII, como Hobbes e Espinosa, e, antes deles, sobre a obra inaugural de Maquiavel. Essa longa convivência com os autores e os seus problemas permite a Diogo Pires Aurélio (que traduziu Maquiavel e Espinosa) escrever de um modo que é infelizmente raro: cumprindo as normas da Academia e, simultaneamente, tocando aqueles que procuram formar uma opinião educada sobre a coisa política. A erudição que acompanha o pensamento não comete nunca a má-educação de saltar para a boca de cena.

E é verdade que, lendo-o, aquela incidência do pensamento filosófico sobre a vida quotidiana salta à vista. O papel da contingência, da incerteza e do risco na vida política segundo Maquiavel é revelado de uma forma que ilumina o que se vê no dia a dia, auxiliando-nos numa visão ao mesmo tempo mais distinta, mais nítida, e mais distante, menos asfixiada, da realidade. A discussão dos mecanismos através dos quais a soberania é concebida em Hobbes em estreita relação com a ideia de representação diz-nos muito sobre o modo mais geral como o Estado contemporâneo pode, e deve ainda, ser pensado. E a complexidade da reflexão de Espinosa sobre a democracia permite fazer sentido daquilo que, reivindicando-se dela, simultaneamente a estrutura e a ameaça.

Descobrimos, por assim dizer, os problemas por detrás dos problemas. Os problemas políticos mais habituais, os que ocupam jornais e televisões, no fundo exprimem, sob uma forma mais ou menos distorcida e retórica, por mais insignificantes que sejam os personagens que se agitam, a conflitualidade que é o modo de ser da sociedade. Em última análise, a filosofia não pode evitar ser uma ontologia. Mesmo quando lida com questões de teoria do conhecimento ou estéticas. Ou, no caso presente, com questões políticas. A filosofia política, queira-o ou não, desemboca numa ontologia da sociedade, numa teoria do que é a sociedade e do que somos nós mesmos enquanto parte dela. Mesmo que a verdade dessa teoria, em virtude da própria natureza do seu objecto, seja em última análise indecidível.

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Mostrá-lo é no entanto fundamental se quisermos fazer algum sentido da nossa experiência, um sentido que não seja uma mera alucinação passional de uma crença política. Aconselho vivamente, neste capítulo, a leitura da segunda parte (“O império das paixões”) do livro de Diogo Pires Aurélio sobre Espinosa. Nele se mostra como, para Espinosa, a racionalidade política, não conseguindo nunca verdadeiramente escapar ao domínio do passional – a vida política é estruturalmente passional –, pode, no entanto, almejar a uma inteligibilidade que, de certo modo, nos permite uma compreensão que vai além do estritamente passional.

Falei há pouco da distância que nos permite uma visão menos asfixiante da realidade e, agora, de uma certa libertação das paixões. No fundo, a vantagem da grande filosofia política é afim daquela que a grande história nos permite. Certamente, e não custa admitir o que Aristóteles dizia e que quase se transformou num lugar comum, que a filosofia (parcialmente acompanhada pela poesia) busca o universal e a história o particular. Mas, paradoxalmente, filosofia e história coincidem, se bem que por vias muito diferentes, nessa possibilidade de distanciação relativamente às urgências do passional.

Em todo o caso, a filosofia, e não é um dos seus menores benefícios, protege da facilidade da indignação. Não dos actos de aprovação e de desaprovação, é claro. Muito pelo contrário. Mesmo que, como dizia Hegel com razão, não deva ser edificante, deve-nos ajudar a julgar. Mas protege-nos da facilidade da indignação quando esta funciona quase como uma cumplicidade com aquilo que indigna, um caso desagradavelmente frequente. E a grande filosofia política protege-nos da facilidade das indignações políticas e do guarda-roupa retórico que fatalmente as acompanha. Quer dizer: impede-nos de levarmos muito a sério a quase totalidade dos discursos políticos que nos acompanham diariamente. Ou melhor: impede-nos de os levarmos à letra e convida-nos a traduzi-los, por difícil ou improvavelmente satisfatório que o exercício pareça, nas questões fundamentais que se repetem.

Significa isto que devamos sair da sociedade, do “império das paixões”, para a pensar? De modo algum. As análises minuciosas que Diogo Pires Aurélio leva a cabo em torno de alguns textos clássicos indicam-nos exactamente a via contrária. A saída para fora da sociedade com vista a uma contemplação rigorosa da vida social, além de impossível, tornar-nos-ia cegos à própria sociedade. A distância possível face à passionalidade social dá-se ainda no interior da própria sociedade e não pode evitar nunca um certo comprometimento com esta. A realidade política não é avistável a partir de Sirius. Essa é igualmente uma das grandes lições oferecidas pelos dois livros de Diogo Pires Aurélio.