Um destes dias, uma amiga comentava no seu Facebook que a direita portuguesa não perde uma oportunidade para mostrar que não é liberal. Liberal no sentido de respeitar as liberdades individuais, entenda-se. Não lhe perguntei a que situação em concreto se referia porque os exemplos são tantos que quase dispensam especificação.
A Direita mostrou que não é liberal quando se discutiu o casamento homossexual, não sabendo respeitar a liberdade de cada um casar com quem quer. Tornou a mostrar que não é liberal quando em 2012/2013 se fez valer da sua maioria para impedir a adopção por casais do mesmo sexo, tendo, numa primeira fase, graças a alguns deputados do PSD, deixado passar a co-adopção. Lembre-se que no caso da co-adopção estávamos a falar de crianças que já viviam, de facto, em famílias com duas mães ou dois pais. Ou seja, tratava-se apenas de dar cobertura legal a uma realidade que existia. Seria impossível a um liberal rejeitar esta lei. No entanto, a Direita, não respeitando as crianças que viviam em famílias “fora da sua norma”, socorreu-se de um estratagema (proposta de um referendo sobre o assunto) para evitar que a co-adopção se institucionalizasse. Naturalmente, já nesta legislatura, a nova maioria de esquerda, com os votos contra da Direita, trataria de legalizar a adopção plena por casais do mesmo sexo. Há assuntos em que a Direita faz questão de sempre estar no lado errado da história.
Mas o fetiche da Direita portuguesa não é apenas com homossexuais. Simplesmente, não consegue respeitar as liberdades individuais quando se trata de assuntos que afectam a sua moral social. Foi assim no ano passado quando quis obrigar as mulheres que recorrem a um aborto a ter consultas psicológicas obrigatórias. E, pasme-se, nessas consultas obrigatórias, as mulheres podiam ter de enfrentar um médico que fosse objector de consciência relativamente à interrupção de gravidez. Isto com a justificação de que o contrário seria “discriminar os objectores de consciência”!
Este ano, quando se discute a procriação medicamente assistida, mais uma vez a Igreja, perdão a Direita, quer impor a sua moral, impedindo que casais de lésbicas ou mulheres solteiras possam recorrer a ajuda médica para engravidar, impedir o recurso à maternidade de substituição, etc. É-lhes impossível respeitar o livre-arbítrio individual, quando em causa está a sua moral.
Foi Margaret Thatcher, a dama de ferro inglesa, que disse: “there’s no such thing as society; there are individual men and women and there are families”. Traduzo: “isso da sociedade é uma coisa que não existe; há homens e mulheres individuais e há famílias”. Mas, para a nossa Direita, é impossível imaginar uma sociedade em que o indivíduo não seja submetido às amarras da sua moral.
As pessoas de direita que alegam ser liberais, percebendo a óbvia contradição entre o que defendem na teoria e o que defendem na prática, costumam encontrar soluções ad-hoc para as suas posições anti-liberais. Por exemplo, o problema da procriação assistida não é o direito em si mesmo que a mulher tem, mas sim o facto de se transformar esse direito numa “obrigação do Estado”. Ou seja, a obrigação que o Estado tem em mobilizar cuidados de saúde que possam responder a este direito. Depois adicionam uns pozinhos de demagogia, falando em listas de espera ou de doentes de cancro que não são tratados a tempo, como se, no global, o nosso Sistema Nacional de Saúde não passasse com distinção em qualquer estudo comparativo internacional.
Confesso que, para minha surpresa, já vi o mesmo argumento ser dado a respeito da eutanásia, que agora tanto se discute. Não se nega o direito individual ao suicídio. Quem quiser suicidar-se que pegue numa pistola e estoire os miolos. Pedir ajuda ao Estado para uma morte mais suave é que não, nem pensar. É a Direita que temos, no papel, muito respeitadora da liberdade individual. Na prática, o indivíduo submete-se sempre à moral social.
Em tempos, escrevi aqui que a nossa Direita era peculiar e que, na verdade, mais do que reduzir o peso do Estado, o que pretendia era mesmo substituí-lo pela Igreja. Dei, na altura, o exemplo da Educação e, nestas últimas semanas, temos observado isso mesmo. O Governo veio anunciar o que devia ser óbvio: que onde houvesse uma escola pública não faria sentido o Estado continuar a subsidiar uma escola privada. É, aliás, o que está na lei; o facto de esta durante décadas não ter sido respeitada por sucessivos governos não é desculpa para continuar a não ser. Numa altura em que todas as poupanças que o Estado possa fazer são bem-vindas, a nossa Direita devia aplaudir.
Mas a Direita, que tanto vitupera os subsídio-dependentes, não aceita. Quer que o Estado respeite a escolhas individuais. Neste caso já não faz mal que seja o Estado a pagar. E, como é bom de adivinhar, o problema não está no facto de se cortar o financiamento do ensino privado. O problema está em se cortar o financiamento de escolas católicas. Repare-se nesta passagem de um artigo de João César das Neves publicado na semana passada no Diário de Notícias: “A medida parece genérica, contra as escolas privadas, o que permite o cinismo de o maior ataque dos últimos anos contra a presença da Igreja Católica na sociedade fingir neutralidade.” Na verdade, o problema é sempre o mesmo, todos os cortes de despesa são bem-vindos, excepto os que afectam a Santa Madre Igreja.
Alexandre Homem de Cristo, aqui no Observador, com a inteligência que o caracteriza, apresenta o melhor argumento possível para defender estes subsídios. Para tal recorre ao exemplo de uma escola pública às moscas, em Paços de Brandão, e ao do Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas, uma escola de propriedade privada, na mesma zona de residência, que tem 74 turmas financiadas pelo Estado. Diz que se os pais preferem a segunda, então deve-se encerrar a primeira e financiar a segunda. O problema é que a primeira não pode encerrar. Como a escolaridade é obrigatória e o nosso Estado é laico, é obrigação do Estado garantir que existe uma escola laica. Um Estado laico não pode obrigar uma família a inscrever as suas crianças em escolas de inspiração católica. A implicação lógica é simples: onde há escola pública, não se deve financiar escolas privadas. A não ser, claro, que o Estado deixe de ser laico, como grande parte da Direita gostaria.