O fogo de Pedrogão-Grande, que matou 65 pessoas, não foi há quatro dias, nem há quatro semanas. Foi há quatro meses. Quatro meses em que não mudou o tempo seco, em que persistiram as temperaturas altas, e em que os ventos foram recorrentemente fortes. Que fez o governo, nesses quatro meses, para prevenir a repetição da tragédia? Avisou e organizou as populações? Criou perímetros de segurança em volta de estradas e povoações? Bastar-lhe-ia metade do zelo que a câmara de Lisboa exibiu, nos últimos meses, a decorar pracinhas e a enfeitar pracetas. Mas não. Cumprindo o calendário, fechou postos de vigia e retirou meios do terreno. E foi assim, sempre em seca extrema, com grande calor e previsão de vento forte, que uma grande parte do país entrou no fim de semana como um carneiro no matadouro.

Nunca terá havido tragédia mais anunciada. Depois de mais uma noite de serras ao rubro, povoações cercadas, comunicações a falhar, populações desamparadas, comandos descoordenados, bombeiros em desespero, caos e terror, o país acordou a fazer contas sinistras: ao fim do dia de ontem, chegavam aos 36 mortos. Desta vez, o escândalo extravasou as fronteiras: a Xunta da Galiza já se queixou de um país transformado num santuário de incêndios, que aqui crescem à vontade para depois atacar o país vizinho. Mas valerá a pena continuar? A meio da noite de domingo para segunda, o primeiro-ministro já tinha calado todas as conversas: enquanto ele governar, haverá sempre a mesma ministra e as mesmas tragédias. Quem pensar que pode não ser assim, é “infantil”. Ou seja: para o ano há mais, e eles lá estarão nos mesmos lugares.

Não penso que seja preciso explicar nada ao primeiro-ministro, que anda cá há muito tempo, mas vou-o dizer à mesma: ninguém pensa que a saída da ministra baste para pôr fim aos incêndios, mas, pela mesma lógica, a chamada “ordenação da floresta” também não basta (como se viu no pinhal de Leiria). Não é isso que está em causa, mas outra coisa, tal como em Pedrógão-Grande: a capacidade do Estado, não para mudar o clima e o revestimento vegetal do país, mas para impedir, com este clima e este revestimento vegetal, que os incêndios florestais aterrorizem, destruam e matem como por duas vezes já fizeram este ano. E não, não é aceitável termos de nos conformar com mais 100 mortos para o ano que vem, numa espécie de estado de calamidade permanente.

A questão mais urgente não é a da “ordenação da floresta”, mas a da “ordenação do Estado”. A demissão da ministra, do secretário de Estado e dos dirigentes dos organismos que tutelam não é a solução de todos os problemas. Mas seria a solução de pelo menos um gigantesco problema: a falta de responsabilidade e de vergonha na governação. Termos alguém finalmente a dizer-nos: falhámos, queremos pedir desculpa, e por isso damos o lugar a quem tenha competência para fazer melhor e autoridade para exigir mais – isso sim, seria uma mudança fundamental. Mas seria também o reconhecimento de uma responsabilidade. E é isso que o primeiro-ministro dispensa, e daí a retenção da ministra. Responsável, só pelo descongelamento das carreiras na função pública.

Os oligarcas não parecem preocupados. As comunidades rurais do interior não fazem opinião: que sejam “resilientes” e “proactivas”, como disseram a ministra e o secretário de Estado, isto é, que se desenrasquem sozinhas. Os funcionários públicos, pelo contrário, fazem opinião. Mas desses cuida um Orçamento feito à medida para apagar, quando os vencimentos forem pagos, qualquer recordação do mais trágico e vergonhoso colapso da governação em tempos recentes. É assim que vai ser? Cabe aos portugueses dizer se é.

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