No dia 13 de Março, daqui a poucos dias, faz três anos que o Papa Francisco foi eleito. Tinha 77 anos e preparava-se para ser dispensado dos encargos maiores da sua diocese, mas aceitou a missão com uma energia renovada. Com uma jovialidade inesperada, mesmo. No ano em que cumpre 80 anos e depois de mais uma viagem épica, ao México, onde foi acolhido por milhões de fiéis em festa, o Papa Francisco mantém essa mesma energia vital, quase inaugural. Como se também ele fosse um adolescente Erasmus, em fase de avançar pelo mundo em modo inter-rail e mochilão, ou a percorrer as periferias de autocarro, chegando pelo seu pé onde não chegam os voos low cost. Impressiona sempre ver alguém capaz de uma entrega tão grande, especialmente numa idade em que nos parece fazer sentido podermos finalmente retirar-nos da vida activa para ficarmos mais recolhidos e porventura mais tranquilos. Todos, sem excepção, vivemos nesta ilusão de que um dia conseguiremos descansar mais e vamos finalmente ter tempo para ler tudo o que não conseguimos ler durante a nossa vida profissional, organizar o que nos falta organizar e por aí adiante.
D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, que vai, como ele próprio diz, “12 anos atrás do Papa Francisco”, confessa que por muito menos que uma viagem ao México pode sentir-se esgotado, e assume que precisa cada vez mais de tempos de descanso antes dos seus dias mais agitados e exigentes. Por isso mesmo sublinhou esta energia, este vigor, esta capacidade única e este grande dom que o Papa Francisco tem para manter o espírito aberto e jovem. Fê-lo num encontro extraordinário deste fim de semana, curiosamente perante uma plateia de quase mil pessoas onde a esmagadora maioria eram jovens universitários.
D. Manuel Clemente abriu a 3ª edição do Faith’s Night Out, uma espécie de TED espiritual com 12 oradores que se sucedem no palco para talks de 7’ cada. O tema da apresentação de D. Manuel Clemente era: “quem não vive para servir, não serve para viver” e foi isso que o fez partir do exemplo, do testemunho de vida do Papa Francisco.
Tão impressionante como a inquebrantável força anímica do Papa Francisco é a sua lucidez, a sua coragem, a sua ternura, o seu sentido de humor e a sua simplicidade. Tão importante é aquilo que diz e faz, como a maneira como o diz e o faz. A sua coerência marcam-nos desde o primeiro minuto do seu Pontificado, e mesmo os mais cépticos e descrentes reconhecem e respeitam esta mesma coerência com que pensa, sente, escreve, fala e age. Não se trata apenas de alguém que, para criar uma nova tendência, recusou os lendários sapatos encarnados ou usar ao peito uma cruz de ouro; de alguém que por um gesto de humildade paga o quarto da hospedaria onde passou a noite, ou por um impulso afectivo pega no telefone para ligar a uma mulher doente ou falar a um pai desesperado. Trata-se de um homem que se mantém humano e próximo, que cultiva essa mesma atitude de humanidade e proximidade, que assume as dores do mundo e age sobre elas. Num tempo de grandes fracturas e divisões, numa era de terrorismo e ameaças constantes, num século já saturado de feridas que não cicatrizam, Francisco convocou um Ano Santo da Misericórdia. Fê-lo sabendo que para todos nós é difícil perdoar e esquecer, mas foi também por isso que decretou este Jubileu extraordinário. Para não nos esquecermos de treinar a misericórdia.
Perdoar é um dos verbos de conjugação mais difícil. Custa imenso pô-lo em prática, seja numa atitude de perdão aos outros ou a nós próprios. Somos muito severos nos nossos julgamentos e mesmo quando a muito custo conseguimos perdoar, não esquecemos. Mas o Papa Francisco consegue fazer-nos acreditar naquela história real tão bem descrita por Guy Gilbert, um dos ‘padres da rua’ europeus mais conhecidos dos nossos tempos, pela sua vida e obra inteiramente ao serviço dos chamados ‘miúdos de rua’, rapazes em grandes dificuldades que vivem nas fronteiras da exclusão e da criminalidade. Gilbert conta esta história, que é também uma actualização de uma grande parábola, no seu pequeno-grande livro “Perdoar as Injúrias”. Eis a história verdadeira, nas palavras e terminologia do autor, que vive diariamente a realidade dos rapazes inadaptados e excluídos, independentemente da classe social a que pertencem:
“Jean, vinte anos, tinha feito uma canalhice imunda aos seus pais. Então, o pai disse-lhe:
– Jean, sai e nunca mais voltes a entrar! Nunca mais ponhas os pés cá em casa!
Jean saiu, com a morte na alma. Algumas semanas mais tarde, disse para si mesmo: eu fiz porcaria da grande, vou pedir perdão ao meu velho…
E então escreveu ao pai: “pai peço-te desculpa. Fui nojento e um sacana do piorio contigo, mas achas que me podes perdoar? Não te escrevo a minha morada nesta carta, mas se me puderes desculpar põe um lenço branco pendurado na macieira que está à frente de casa. Tu sabes qual é, a última da longa alameda de macieiras que leva à casa. Nesta última árvore pendura um lenço branco. Assim saberei se posso voltar a casa”.
Morto de medo, pensava: “O meu pai nunca irá colocar lá esse lenço branco”.
E foi então que pediu ao seu amigo Marc: “Suplico-te que venhas comigo e fazemos assim: eu vou conduzir até quinhentos metros antes da casa e depois passo-te o volante. Depois fecho os olhos. Lentamente tu vais descer essa alameda de macieiras e vais parar na última. Se vires o lenço branco pendurado, dizes-me e saio a correr. Se não, continuarei de olhos fechados e vamos embora. E não voltarei nunca mais a casa, como o meu pai disse”.
E assim fizeram.
A quinhentos metros da casa, Jean passa o volante a Marc e fecha os olhos. Lentamente, Marc desce a alameda das macieiras. Depois para. E Jean, com os olhos sempre fechados, diz: “Marc, o meu pai pôs um lenço branco pendurado na macieira?”
Marc responde-lhe: “Não, não pôs um lenço branco na macieira diante da casa… há centenas em todas as macieiras que levam a casa!”
A história real é igual à parábola do Filho Pródigo, na qual o Papa Francisco e muitos crentes, creem. E é nesta fé de que, aconteça o que acontecer, a nossa misericórdia tem que exceder sempre o nosso juízo, o nosso perdão tem que se mais alto e mais fundo do que o nosso julgamento, que o Papa Francisco assenta os pilares deste Ano da Misericórdia e pede para que a pena de morte seja abolida e ninguém seja morto pelos seus crimes. Se todos os dirigentes, autoridades e cidadãos levassem a sério este pedido do Papa, o mundo mudava radicalmente no espaço de um ano…
João Paulo II, santificado pelas suas palavras e acções a favor da paz no mundo, também falava do “perdão como pão quotidiano” e dizia: “temos tanta necessidade de perdão como de pão. Temos uma necessidade incessante de perdoar e ser perdoados, quer seja num casal, na família, na vida profissional, nas comunidades religiosas, como na vida social e política. Perdoar é um elemento muito importante da nossa sociedade, das nossas relações humanas.”
Num mundo em que tanta coisa nos quebra e desanima, em que todos os dias vemos, ouvimos e lemos notícias que nos deixam zangados, perplexos, assustados ou até com o coração despedaçado, em cacos, parece impossível aplicar este principio tão radical do perdão, sempre.
O problema é que se todos precisamos de perdoar e ser perdoados, então os imperativos deste mesmo perdão são os de que falam estes e outros Papas: “perdoa até ao infinito. Ouve o outro. Respeita-o. Vai ter com aquele ou aquela que ninguém quer. Sem perdão nenhum amor é possível. Amar é perdoar.”
É extraordinariamente difícil, é certo, mas não é impossível. E todos guardamos para sempre a imagem de um pai e um filho de origem asiática, num diálogo sobre armas e flores, velas e bombas, imediatamente a seguir aos atentados de Paris. Às perguntas do filho sobre os ‘maus’, o pai respondia com serenidade e palavras cheias de sabedoria e misericórdia. As mesmas palavras que outro pai, que ficou viúvo nos mesmos atentados de Paris, usou para escrever uma carta ao filho sem o menor vestígio de ódio. Uma carta que ele próprio assumiu que escreveu para nunca ter a tentação do rancor e da vingança. Estes e outros gestos interpelam-nos profundamente por serem verdadeiramente resgatadores, pois não é preciso ser crente nem fã do Papa Francisco para perceber que a incapacidade de perdoar perpetua ódios e alimenta desejos de vingança.
E é por isso que Francisco põe toda a sua esperança num jejum de palavras e gestos, e não numa privação de chocolates e doces nesta Quaresma. Porque também ele sabe e conhece muita gente aparentemente incapaz de jejuar de raiva e pessimismo, queixas e amarguras, egoísmos e e descontentamentos, mas que mudam quando se sentem perdoadas. Quando à sua volta de repente começa a aparecer lenços brancos pendurados nas árvores.