Joseph Moingt, teólogo francês contemporâneo e um pensador admirável que conheci através dos livros de Tomáš Halík, incita-nos a descobrir Deus tal como é, não o Deus dos nossos pais nem uma divindade particular, mas o Deus universal, dos outros, de todos, um Deus sobre o qual ninguém pode dizer que detém o monopólio. Moingt diz que “nem sequer devemos ter medo se, no intervalo entre perder o Deus dos pais e encontrar o caminho dos filhos – já não uma religião herdada, mas uma resposta livre – o ateísmo fizer a sua aparição”.

Continuo a citar Joseph Moingt, que permanece vivo e fará em breve 105 anos, quando declarou que esse período de esvaziamento, sem Deus, esse tempo de ausência, é necessário para “permitirmos a Deus que se ofereça a nós tal como é. Devemos deixá-lo vir na sua novidade, mesmo que então sejamos incapazes de reconhecer o Deus dos nossos pais naquele que vem de outro lugar”.

Para uns, o Deus dos pais foi decisivo para o conhecerem, para se manterem próximos e cultivarem com Ele uma relação íntima, individual. Para outros, esse Deus foi ficando desfasado e distante, sem ligação à realidade, alheado do concreto das suas vidas. Muitos não só cristalizaram nesta imagem de Deus, como ficaram para sempre na “4ª classe da fé”, por assim dizer. E há, e haverá sempre, aqueles cujos pais nem sequer falam de Deus por ser um desconhecido ou não lhes fazer sentido.

Pensei nos escritos de Moingt, extraordinariamente atuais e relevantes, enquanto assistia em direto, online, à ordenação de novos padres jesuítas. Com um intervalo de uma semana, ordenaram-se oito sacerdotes, 5 diocesanos e 3 jesuítas, todos eles muito jovens. Apenas um dos diocesanos tem mais de 40 anos e a juventude dos recém-ordenados interpela e faz refletir sobre quem é este Deus em que acreditam e por quem entregam a vida.

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Não assisti à cerimónia dos Jerónimos, onde se ordenaram os padres diocesanos, apenas acompanhei a Missa na Sé Velha de Coimbra por ter bons amigos e verdadeiros mestres espirituais entre os jesuítas, e revi o ritual tocante que passa por cada um se deitar no chão, ao lado dos outros, e assim ficar em atitude de humildade e consagração, oferecendo a sua vida para a exigente missão do sacerdócio.

É impossível ficar indiferente numa cerimónia de ordenação, porque sabemos que é o momento simbólico da entrega total. Celebra a vontade de corresponder ao chamamento de Deus e revela um despojamento completo. O espírito de gratidão com que cada um se apresenta perante o altar convoca em nós uma sucessão de pensamentos e interrogações. A liberdade interior que estes e outros jovens demonstram ao optarem pela exigência radical do sacerdócio inspira, mas também nos questiona. Desinstala-nos a ideia de alguém “desistir” dos seus sonhos para servir a Deus.

Todos os padres que conheço, velhos e novos, diocesanos ou ligados a ordens religiosas, falam da sua adolescência e juventude como tempos de “vida normal”, digamos assim. Poucos souberam desde cedo qual era a sua verdadeira vocação e muitos assumem que fizeram (quase) tudo para resistir à chamada. Tentaram passar ao lado, concluíram cursos universitários, fizeram especializações, apostaram em vias profissionais, criaram laços e alguns tiveram namoros com casamento à vista. Raros são os que admitem uma descoberta precoce e linear da sua vocação.

Olhando para os novos padres sossega-me a ideia de serem homens do seu tempo, rapazes íntegros e integrados que viveram a sua juventude com abertura, liberdade e coragem para escolher um caminho próprio, para decidir sobre aquilo que sentem que é a sua verdadeira vocação. Diria que o maior sinal de liberdade interior destes jovens é justamente terem optado pela via porventura mais incompreensível aos olhos do mundo. Não foram obrigados a nada por ninguém, não ingressaram no seminário por falta de recursos ou opções. Foram, porque se sentiram interiormente chamados.

Ir contra as expectativas de pais e familiares, amigos e colegas nunca é fácil. Pior ainda, quando à luta interior para largar os seus próprios projetos se somam as tristezas das noivas que veem os noivados desfeitos por uma opção de fé. Em todo o caso, é fascinante ver como cada um sai transformado desse tempo de discernimento, seguido de longa e intensa formação. Depois das sucessivas provas, provações e confirmações a que são sujeitos durante os anos de estudo, chegam ao dia da sua ordenação cheios de luz e ânimo, mas também de gratidão. Impressiona muito a gratidão que sentem.

Existem poucas profissões em que, antes de serem admitidos, os candidatos são testados a níveis tão profundos e elevados como os noviços, antes de serem padres. E, mesmo assim, ainda há desvios…

A consagração de uma vida faz-se ao longo de toda vida. Ninguém fica padre de um dia para o outro e, sobretudo, “ninguém é padre sozinho”, como disse Miguel Almeida, o novo Provincial dos Jesuítas, na cerimónia de ordenação. Ainda há pouco tempo o entrevistei, quando ainda não sabia que ia ser nomeado Provincial, e as suas palavras continuam a fazer eco: ser padre é difícil, fazer votos de obediência e castidade é muito exigente todos os dias.

Seguros da sua opção, mas certamente conscientes da radicalidade da sua entrega, os novos sacerdotes fizeram o que fez o Papa Francisco no seu primeiro discurso, quando agradeceu e pediu orações:

“Precisamos de vocês hoje e durante o resto das nossas vidas. Não nos deixem esquecer que devemos ser lugares de descanso e não de inquietação, sinal de alegria e paz de Deus, chamados a consolar os que andam tristes e abatidos, abrindo-lhes novos horizontes.”

A cerimónia foi presidida por D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra, que começou por agradecer aos jovens padres o “sim” que deram à Igreja e a Deus. “A gratidão a Deus é uma das marcas mais fortes da vida de um padre.” Mas não é a única. O espírito de serviço e a capacidade de ir ao encontro dos mais pobres e desamparados, bem como a disponibilidade para ouvir, consolar e reconciliar, mas também agir e contribuir para o bem comum, são igualmente decisivas.

Num mundo em que Deus continua a ser uma palavra difícil e num tempo em que, nos media, quase só se ouve falar dos padres pelas piores razões, o bispo pediu aos novos sacerdotes que fiquem “particularmente atentos ao que se passa na Igreja e na sociedade, pois nada do que é humano, com todos os contornos atuais, nos pode ser alheio. Queremos ser padres deste tempo, verdadeiros servidores da graça no contexto em que nos encontramos”.

Olhando às biografias dos novos padres, todos eles já com muito trabalho feito na comunidade (alguns em freguesias com bairros extremamente vulneráveis), e ouvindo o que cada um disse e ficou gravado para a posteridade, percebe-se bem o caminho que percorreram para chegar onde chegaram, como verdadeiros filhos.

Termino como comecei, com uma citação de Moingt: “desistamos do Deus dos pais e encontremos o Pai de Jesus Cristo, tenhamos a coragem de deixar para trás a ‘religião herdada’ e a nossa fixação infantil nas formas do passado, a troco da fé dos filhos.”