100 anos depois, a mesma preocupação: a natalidade. Mas por razões diametralmente opostas.
Quando a I Guerra se iniciou o poderio de cada um dos beligerantes media-se muito no número de jovens que conseguia mobilizar para os seus exércitos. Uma boa parte da força militar das potências era a sua força demográfica, e isso preocupava os líderes da época. A capacidade industrial também pesava, e pesaria de forma decisiva quando os Estados Unidos entraram na guerra, mas a imensa mortandade das trincheiras só podia ser alimentada por milhões – sim, milhões – de jovens mobilizados.
Hoje a natalidade inquieta as nossas lideranças não porque faltem jovens em idade militar, mas porque faltam jovens em idade de descontar. Jovens e todos os outros, os de meia idade. Hoje também ninguém pensa que a guerra ainda seja uma possibilidade – de certa forma, ela tornou-se uma impossibilidade. Foi isso que Putin percebeu.
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Imagino que todos estejam recordados das primeiras sequências de O Resgate do Soldado Ryan, aquelas em que soldados americanos enchem as barcaças de desembarque do Dia D de onde muitos deles saltarão para serem imediatamente mortos. E mesmo assim continuaram a sair, a sair, a cair primeiro ainda no meio das ondas, a cair depois nas areias de Omaha Beach. Muitos se recordarão também do longo traveling no fundo das trincheiras da I Guerra, no filme de Kubrick Horizontes de Glória, naqueles momentos antes de um ataque, quanto todos ali sabiam que muitos deles estariam mortos dentro de poucos minutos.
As guerras eram assim e não tenho qualquer nostalgia desses tempos. Nas guerras morria-se em números que hoje nos surgem como totalmente incompreensíveis. Só no primeiro dia da batalha de La Somme, uma inútil ofensiva britânica durante a I Guerra, em 1916, morreram 20 mil soldados.
Hoje sabemos como é. Se possível, enviam-se só os drones para uns “ataques cirúrgicos”; se não for suficiente, enviam-se os mísseis de cruzeiro; só depois seguem os aviões. A possibilidade de ainda seguirem soldados é cada vez mais reduzida. Cada baixa em combate parece ter-se tornado num ónus que as opiniões públicas são incapazes de suportar e que os líderes políticos se empenham a evitar a todo o custo. Isso e a divulgação de fotografias ou outras imagens das vítimas inimigas ou civis.
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É bom que possamos viver tempos destes. Apesar de todas as notícias sobre guerras e conflitos que continuam a povoar os nossos espaços informativos, nunca houve tão pouca violência no mundo. Exacto. Os números não mentem: nos anos da II Guerra morreram, em média, 300 pessoas por ano por cada 100 mil habitantes do planeta. No início da década de 1950, nos anos da Guerra da Coreia, esse valor tinha caído pela 30 por 100 mil. Na década de 1980, uma época em que a rivalidade entre os Estados Unidos e a URSS ainda alimentava guerras em muitos cantos do globo, esse indicador já caíra para 5 por 100 mil. Neste nosso século XXI, apesar de tudo o que conhecemos, nunca chegou a um por 100 mil. São números que incluem todo o tipo de conflitos, mesmo incluindo as muitas guerras civis existentes, mas que desmentem as previsões apocalípticas de que um planeta com cada vez mais população seria também um planeta mais violento.
Houve um período no século XX em que o número de conflitos e o número de baixas também diminiui de forma acentuada: os anos entre as duas guerras. Foi a época em que começou por se acreditar que a Sociedade das Nações poderia resolver os conflitos entre Estados de forma pacífica e aquele em que houve a ilusão de que a memória das carnificinas da I Guerra impediriam esses mesmos Estados de se voltarem a envolver num conflito em larga escala.
Tantos anos passados, nós hoje temos as Nações Unidas – apesar de todas as suas limitações bem mais eficiente do que a Sociedade das Nações – e a convicção de que nações onde existem McDonalds não se combaterão. Há o sério risco de estarmos enganados, mais uma vez.
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Conhecemos o mantra dos tempos modernos: “não há solução militar”. Seja qual for o tema, a crise, o conflito, todos nos dirão que enviar os soldados nunca resolverá nada. Vivemos na ilusão de que tudo se pode resolver à mesa das negociações e que de nada servem os conflitos militares. Infelizmente para nós há quem não acredite nisso.
Clausewitz, o grande teórico da guerra, definia-a guerra como um prolongamento da diplomacia por outros meios, mas era um estadista num tempo de estadistas. Hoje há muitos para quem a guerra é a condição da diplomacia, o ponto que precede qualquer diplomacia. São assim muitos grupos terroristas, são assim muitos dos protagonistas das “guerras assimétricas”: o seu jogo é forçarem a mão de todos quantos têm a guerra por intolerável.
As potências agressivas agem de uma forma que não é muito diferente. Vão forçando a mão através da criação de situações de facto em que, de um lado, há quem mostre estar determinado em utilizar todos os meios e, do outro, está quem hesita. Foi o que fizeram a Alemanha de Hitler e o Japão de Hirohito nos anos que antecederam a II Guerra: em nome de reivindicações que inicialmente até podiam ser consideradas razoáveis pelos seus vizinhos, foram avançando e testando a capacidade de reacção da comunidade internacional de então. Esta, como se sabe, preferiu a política de apaziguamento, com as consequências conhecidas.
Será que Putin, em nome de reivindicações compreensíveis numa lógica nacionalista – reivindicações que vão desde direitos históricos na Crimeia à alegada defesa de minorias russas, passando pela reparação de humilhações passadas –, não está a percorrer um caminho semelhante? Primeiro foi a Crimeia, agora é a duplicidade na Ucrânia oriental. Primeiro foi uma aparente distância, agora foi uma intervenção militar directa, fundamental para virar o sentido do conflito militar entre as autoridades de Kiev e os separatistas pró-russos.
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A NATO esteve reunida a semana passada no País de Gales e houve quem saudasse essa cimeira como “histórica”. Tudo porque se teria voltado ao “ponto de partida”, isto é, está de novo obrigada a “garantir a defesa dos aliados perante a ‘paz quente’ que Putin conseguiu instalar na Ucrânia”, como defendeu Teresa de Sousa. Tenho, sinceramente, as maiores dúvidas. Dúvidas de circunstância e dúvidas de fundo.
As minhas dúvidas de circunstância derivam do grau de comprometimento, assumido pelos parceiros da NATO, que é quase nenhum. Uma coisa foram os discursos, cujo tom subiu e onde houve coordenação entre as posições dos aliados. Outra coisa são os actos, e estes não mostraram real determinação. Putin não tem razões para se sentir ameaçado. Já o Presidente ucraniano, que uma semana antes recusara negociações por estar a vencer os rebeldes, acabou por ser obrigado a negociar em posição de relativa fraqueza porque a situação no terreno se alterou depois da intervenção das tropas russas – e porque não terá encontrado em Newport a força que lhe falta no terreno.
Mais importantes são as minhas dúvidas de fundo, e elas prendem-se com a falta de vontade de lutar das democracias ocidentais. O problema não é faltarem-lhes líderes, como se gosta de dizer. O problema é que as sociedades em que vivemos não darão um passo para não serem apenas “democracias liberais”, serem também “democracias liberais armadas”.
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Foi publicada a semana passada em Espanha uma sondagem onde se ficava a saber que só 16% dos espanhóis estavam dispostos a participar voluntariamente na defesa do seu país. Não na defesa da União Europeia, ou do Ocidente, ou da liberdade, ou do direito dos povos à autodeterminação: na defesa do seu país. Não conheço estudos noutros países, mas suspeito que mesmo em Estados unitários, sem o problema das várias nacionalidades que existem em Espanha, os resultados não seriam muito diferentes.
Este é o maior abismo que existe entre a Europa de hoje e aquela que, há cem anos, marchou entusiasticamente para as trincheiras. A hipótese de ter de defender o nosso país não se coloca, a de combater algures no mundo em nome de valores partilhados ainda menos. Sociedades que gastam um quinto da sua riqueza a pagar pensões de velhice – e onde grande parte da população depende desse pagamento para sobreviver – não precisam de gostar muito de McDonalds para não estarem preparadas para defender o tipo de valores que está em causa no conflito ucraniano. Isso não acontece por falta de vontade política dos líderes – isso acontece porque foi assim que preferimos viver. E ainda bem.
Acontece que outros não têm os mesmos valores, não alimentam as mesmas ambições e estão dispostos a utilizar outros métodos. É talvez por isso, por estas nossas sociedades serem tão diferentes, que me parece sempre um pouco vácua a discussão sobre se estamos a repetir os erros dos líderes pré-I Guerra – os “sonâmbulos” que caminharam para o desastre sem ver o que aí vinha – ou os erros dos líderes pré-II Guerra – os “apaziguadores” que cediam em tudo para evitarem um conflito.
O líderes de hoje enfrentam uma realidade bem diferente e difícil de mudar: a convicção generalizada, a vontade enraizada de que não, não iremos morrer por Donetz.
De resto, onde é que fica mesmo Donetz?
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