Ao contrário do esperado por muitos, o governo tem adaptado as suas políticas à realidade com que é confrontado sem que, com isso, os alicerces da coligação cedam. Uma consequência visível da forma como as políticas se adaptam quer à realidade económica quer à realidade da política europeia é o desfasamento entre o discurso e a prática orçamental. Por exemplo, e para me ficar nos domínios onde me movo, a grande aposta no ensino superior e na ciência, tal como no ensino público em geral, traduz-se em nada em termos orçamentais.

Mesmo a descida de alguns impostos directos (como por exemplo a sobretaxa de IRS, a redução salarial dos funcionários públicos com vencimentos mais elevados, ou a contribuição extraordinária de solidariedade que incidia sobre as pensões acima dos 4600€) foi (parcialmente) revertida por um aumento dos impostos indirectos (como os que incidem sobre o gasóleo e gasolina). A descida do IVA na restauração foi também parcialmente revertida com a absurda distinção entre comidas e bebidas. E, provavelmente, se a realidade assim o exigir, será revertido o que falta. Com esta política de cedências à esquerda e de reversões à direita, Costa consegue manter o essencial dos seus compromissos para as finanças públicas para 2016. Ainda há duas semanas o FMI veio dizer que previa um défice orçamental de 2,9% para este ano, o que coincide com o que estava previsto no cenário macroeconómico do Partido Socialista em Agosto de 2015.

Há, no entanto, uma promessa que resiste a qualquer reversão. Usar os fundos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) para financiar a reabilitação urbana. Não falamos de uma verba irrisória que pudesse ser explicada a título de experiência piloto. Falamos de 1.400 milhões de euros!

Nos anos 80 e 90, a construção e o imobiliário, fomentados quer pelas obras públicas (muitas delas bem-vindas), quer por incentivos à compra à habitação, foram um dos principais motores da economia portuguesa. Num livro que escrevi com Fernando Alexandre e Pedro Bação — “Crise e Castigo”, a ser publicado dentro de um mês pela Fundação Francisco Manuel dos Santos —, explicamos com algum detalhe por que motivo se insistiu neste modelo mesmo no novo milénio, quando Portugal já tinha parado de crescer, e era evidente o seu esgotamento. Os estádios de futebol construídos para o Euro 2004 são um exemplo desta aposta — mas há vários outros, como a Parque Escolar ou os programas Pólis.

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Hoje, é claro que a aposta nestes sectores não se traduziu num desejável aumento da produtividade e não teve efeitos duradouros no crescimento. Muito menos o terá o investimento na reabilitação urbana. Não há melhor exemplo do que este para ilustrar o que é investir num modelo económico esgotado.

O governo argumenta que este “investimento” mais não é do que uma diversificação dos activos do FEFSS e que a Segurança Social não é prejudicada. Mas esse argumento não colhe: já nos foi explicado, pela voz do primeiro-ministro, que esta “aposta na reabilitação urbana terá de ter uma forte componente de promoção da oferta de habitação para arrendamento acessível” — um eufemismo para rendas abaixo do valor de mercado. Ou seja, insiste-se em investimentos que não aumentam o potencial produtivo de Portugal e assegura-se a sua baixa rendibilidade. Pior é difícil.

É fácil de perceber porque se recorre aos fundos da Segurança Social em vez de recorrer ao Orçamento de Estado. Como explicou o ministro da tutela: “A ideia de que se está a gastar dinheiro e ele desaparece não é o que corresponde à verdade. O que poderá existir são mudanças das aplicações, elas continuarão a constar do balanço do Fundo e do seu património”. Trocando por miúdos, contabilisticamente, esta operação não é tratada como uma despesa, mas como uma mera recomposição de activos. É apenas mais uma estratégia de desorçamentação. Fazer isto, depauperando os recursos da Segurança Social, que enfrenta problemas gravíssimos de sustentabilidade, é juntar o insulto à injúria.

Se isto não é um caso de gestão danosa da coisa pública não sei o que será. Num momento em que se arrumam na gaveta da retórica tantas apostas estratégicas, como conceber que não se recue num assunto desta gravidade? É tão difícil de entender que me vejo forçado a fazer minhas as dúvidas de Fernando Alexandre, a quem roubei o título deste artigo: “Porque acredito, apesar de tudo, na racionalidade dos agentes políticos, a questão que se coloca é: qual a origem do poder dos sectores da construção e do imobiliário? Sem que esta pergunta seja esclarecida, não vamos compreender a natureza da grave crise que se instalou na economia portuguesa desde o início do século XXI.”