No fim de 2013, discutíamos se íamos ter um programa cautelar ou não. O programa cautelar serviria para garantir que durante um período de transição não estávamos sujeitos aos humores dos mercados e que conseguiríamos financiar-nos a taxas de juro baixas. Em 2014, a saída limpa foi anunciada e, com isso, o governo PàF declarou o sucesso da sua política. Infelizmente, é mentira. Ao contrário do que se apregoa, na prática estamos com um programa cautelar.

Dispensámos um programa cautelar formal, porque nos conseguíamos financiar no mercado a taxas de juro baixas. Mas a verdade é que as taxas de juro não reflectem as condições reais da nossa economia. O programa de compra de dívida do Banco Central Europeu (BCE), quantitative easing, distorce de tal forma o seu funcionamento que é um contra-senso falar em taxas de juro de mercado. O quantitative easing garante-nos que, desde que não rebentemos com os plafonds de compra de dívida pública do BCE, e enquanto o rating da nossa dívida não piorar ainda mais, as nossas taxas de juro manter-se-ão baixas. Tal qual um programa cautelar, temos uma instituição europeia a garantir que não estamos sujeitos aos humores dos mercados.

Infelizmente, ao contrário do que sucederia com o programa cautelar formal, deixámos de ter quem nos vigiasse, estabelecesse limites e impusesse um caderno de reformas a fazer. O governo anterior agradeceu e, a partir de 2014, trabalhou para ganhar as eleições, ao mesmo tempo que passava uma imagem de responsabilidade. Para se perceber isto basta ver como, de acordo com as previsões de Outono da Comissão Europeia, o défice estrutural português aumentou de 2014 para 2015. Ou seja, e como devia ser óbvio para todos, o governo andou em campanha durante pelo menos um ano.

Ironicamente, é agora o governo de Costa que beneficia da margem de manobra que este “programa cautelar” do BCE lhe dá. Mas em vez de usar a usar para corrigir o que tem de ser corrigido, indo mais longe onde é possível, como no ataque às rendas das PPP e de alguns monopólios e oligopólios, limita-se a andar para trás, criando todas as condições para que o passado recente se repita.

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Em vez de prudência, o governo de Costa dá-nos um PREC — Processo de Reversão Em Curso — apressado. Num só ano, reverte (parcialmente) a sobretaxa de IRS. Reverte o horário de trabalho da função pública. Reverte os cortes salariais na função pública. Reverte privatizações (ainda por cima, de empresas que davam imenso prejuízo). Reverte o IVA na restauração. Reverte metade da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, que já só se aplicava a pensões acima de 4500€. Mais grave, reverte a discussão que se começava a fazer sobre a sustentabilidade da Segurança Social.

É possível que tudo corra bem. Que as taxas de juro continuem baixíssimas por muito tempo. Que o baixo preço do petróleo continue a ajudar as nossas contas externas. Que os nossos parceiros cresçam tanto que queiram comprar ainda mais o que produzimos. Mas os riscos são imensos. A FED americana ensaia as primeiras subidas de taxa de juro. Os nossos bancos estão de rastos. As notícias que recebemos da China são assustadoras. De Angola e do Brasil, idem. A probabilidade de um conflito armado de grande escala cresce a cada dia.

Há, no governo, vozes sensatas. Basta ler a entrevista do ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, ao Público. Também o ministro das Finanças parece não ignorar os riscos, como indicia o cancelamento do pagamento antecipado ao FMI. Caso contrário, como interpretar que não aproveite as baixas taxas de juro no mercado para substituir empréstimos com taxas de juro bem mais altas? Mário Centeno sabe que mesmo os plafonds do BCE têm limites e receia descobrir quais são.

As taxas de juro, histórica e artificialmente baixas, são um balão de oxigénio. Um balão de oxigénio que nos devia emprestar tempo para fazermos reformas que andamos a adiar há pelo menos 15 anos. Mas, mais uma vez, aproveitamos as taxas de juro baixas para aumentar a procura interna e adiar a redução do endividamento. A prazo, com a inevitável subida das taxas de juro, voltaremos a chamar uma troika para nos salvar, tal como em 1983 tivemos de chamar novamente o FMI, quatro anos depois do fim do primeiro resgate. E voltarão a dizer-nos que, quando estávamos no bom caminho, veio uma crise internacional e lixou tudo.