Depois das crises da Grécia e da Ucrânia, estas últimas semanas europeias foram as da “crise dos refugiados”. Estamos agora no momento em que as boas intenções começam a estalar. A semana passada, era o Papa Francisco quem alertava para o perigo de jihadistas “infiltrados”. Entre os primeiros-ministros, já não é só o da Hungria, mas também Alexis Tsipras que fala de uma “vaga de migração descontrolada”. Entre os intelectuais franceses, já não é só Renaud Camus, mas Michel Onfray que desconfia das vantagens da imigração. Onfray, até anteontem, era de “extrema-esquerda”. Os seus antigos camaradas chamam-lhe agora “auxiliar de Marine Le Pen”. A migração não está a abalar apenas o tratado de Schengen, mas as fronteiras ideológicas da Europa.
É costume culpar o Ocidente por tudo e por nada do que acontece no mundo. Mas desta vez, nesta crise dos refugiados, a culpa é mesmo dos governos ocidentais. Primeiro, ao acarinharem a revolta da maioria sunita na Síria, para logo depois deixarem os sublevados sem ajuda, abandonados entre a ditadura de Assad e o jihadismo. A ideia, segundo parece, era não repetirem o “erro do Iraque”. Em vez disso, arranjaram o “erro da Síria”, com os seus milhares de mortos e milhões de refugiados. Durante anos, no entanto, tudo pareceu longínquo. Este Verão, porém, as imagens televisivas das migrações mediterrânicas inspiraram Angela Merkel a deixar correr que todos os que, através do Mediterrâneo e dos Balcãs, conseguissem chegar à Alemanha seriam alojados e alimentados de graça pelos contribuintes alemães. Merkel alcançou assim duas coisas. Uma foi diluir a má reputação que lhe deixara a crise grega: de repente, os mesmos que lhe andavam a desenhar bigodinhos à Hitler, cobriram-na com o véu de Madre Teresa. A outra coisa foi fazer a fortuna dos traficantes de seres humanos do Mediterrâneo, a quem, a partir daí, nunca mais faltaram clientes dispostos a correr riscos no mar. Quando 9 000 expatriados desembarcaram em Munique num só dia, Merkel fechou a fronteira.
Os traficantes não são os únicos a explorar a crise. A imprensa mais séria aderiu à pornografia da morte e, sem pudor, vasculha as praias à procura de cadáveres para a fotografia. A esquerda radical manifesta-se para exigir portas abertas, convencida de que quanto mais “minorias”, mais próxima a implosão da “sociedade burguesa”. A direita nacionalista esfrega as mãos de contente, à espera de mobilizar os “nativos” contra a “invasão dos bárbaros”. E até o respeitável Economist sonha alto, apostando na imigração económica para fazer rebentar os códigos de trabalho. Enfim, não há quem não encare os migrantes como carne para o seu canhão — e pouco mais.
As grandes fumaças de humanismo mal escondem a falta de verdadeiro respeito pelos refugiados. O plano de os espalhar pelos vários países, confirmado na terça-feira, é uma das mais ridículas invenções europeias. O objectivo não é apenas partilhar custos, mas diluir a presença da migração, repartindo-a em pequenas porções (para não dar munição aos populismos xenófobos). Os imigrantes, porém, procuram a Alemanha, afamada pelos seus subsídios e salários. Como é óbvio, não se vão conformar com realojamentos forçados em países periféricos e pobres. Também não vieram para se converter em alemães, franceses ou portugueses, segundo uma fantasia de “assimilação” colonial que ainda parece ter subscritores. Tenderão naturalmente a constituir comunidades com identidade própria (isto é, árabe e islâmica, no caso dos oriundos do Médio Oriente). De resto, já mostraram que só estão dispostos a instalar-se nos seus próprios termos. Na fronteira da Hungria, a semana passada, tivemos a primeira intifada da nova imigração, com os jovens migrantes à pedrada à polícia.
O plano europeu das quotas só serviu até agora para revelar uma nova divisão na UE, desta vez leste-oeste, em vez de norte-sul, como no caso do euro. O verdadeiro plano é provavelmente outro: esperar pelo Inverno. Quando o Mediterrâneo se tornar bravo e a neve cobrir os Balcãs, a migração do Médio Oriente vai abrandar – até à próxima Primavera. Depois, logo se verá. A Europa está assim, à mercê do clima.