Qual foi a maior contribuição de Portugal para o pensamento moderno? Não é talvez bom para a auto-estima, como agora se diz, mas foi indisputavelmente o terramoto de Lisboa de 1755. É verdade que a responsabilidade dessa nossa notoriedade não nos pode ser atribuída, colectiva ou individualmente. Os dois únicos candidatos, Deus e a natureza, não consta que sejam portugueses. Mas nada como o terramoto de Lisboa pôs tanto as cabeças pensantes da Europa, de Voltaire a Kant, a falar de Portugal. Voltaire publicou em 1756 um “Poema sobre o desastre de Lisboa”, e, na mesma linha de resposta aos que acreditavam que o nosso mundo é o melhor dos mundos, fez, no “Cândido”, o Dr. Pangloss passar pela nossa terra para mais uma vez ser maltratado. Kant escreveu três ensaios a partir do terramoto (também em 1756) e lembrou-se deles quando, muitos anos depois, em 1791, publicou o seu escrito “Sobre o insucesso de todas as tentativas filosóficas em matéria de teodiceia”. E Kant e Voltaire foram apenas dois entre muitos.
Como notou uma filósofa, Susan Neiman, o acontecimento não poderia ter provocado a reacção intelectual que provocou se tivesse ocorrido em outras épocas. Num mundo pré-moderno, o terramoto teria apenas sido prova de um justo castigo de Deus e teria tido como efeito o reforço da crença religiosa. No nosso mundo contemporâneo, a explicação recorreria ao encontro de placas tectónicas e as pessoas indignar-se-iam com a incúria do Estado e dos seus funcionários, que poderiam ter tomado precauções que não tomaram para minorar as consequências do desastre.
Naquela altura precisa, não. O terramoto foi sentido como uma perda de inteligibilidade do mundo e motivo de conflito entre os dois tipos de explicação possíveis, a religiosa e a científica. Kant sugeria uma explicação científica, enquanto jansenistas e jesuítas ofereciam versões religiosas em que mutuamente se acusavam: os jansenistas sustentavam que, sendo Portugal um viveiro de jesuítas, Deus quisera esmagar a Inquisição (prova: o número de igrejas destruídas e o facto de uma rua inteira com bordéis ter sido deixada intacta); os jesuítas, pelo seu lado, ripostaram que o castigo divino resultaria do relaxamento das práticas inquisitoriais, algo remediável com penitências e autos-de-fé. De qualquer maneira, como Kant explicou depois, o terramoto pôs decisivamente em cheque todas as tentativas de teodiceia, isto é, de compreender os males do mundo como um efeito necessário, se bem que marginal, da sabedoria divina.
O filósofo visado por Voltaire e Kant era o maravilhoso Leibniz, que criara um sistema filosófico de uma admirável riqueza e complexidade que resultava na doutrina segundo a qual Deus, criando o universo, escolhera fazer passar à existência todos os possíveis que, conjuntamente reunidos, constituiriam o melhor dos mundos. O mal (metafísico, físico e moral) aparecia como consequência de um cálculo divino na escolha dos possíveis que passariam a existir, visando a maior beleza e harmonia do todo. O mal só poderia ser visto como um ingrediente de que Deus, por razões de lógica, não tinha maneira de se privar. A explicação dessa doutrina encontrava-se, na sua forma mais conhecida, num livro publicado em 1710, “Ensaios de teodiceia”. A palavra “teodiceia”, por ele forjada, significa, a partir dos seus elementos gregos, “justiça de Deus”. Já agora: como a primeira edição surgiu sem o nome de Leibniz nela aparecer, aprendi no outro dia, houve quem julgasse que “teodiceia” fosse um pseudónimo do autor.
A doutrina de Leibniz não esperou pelo terramoto de Lisboa para ser criticada. Em particular, um jesuíta francês, o padre Louis-Bertrand Castel, em 1737, criticou-a, e, nessa crítica, inventou uma palavra com indiscutível futuro, para designar a doutrina combatida: “optimismo”. A palavra ficou, e já o título completo do “Cândido” de Voltaire (1759) é “Cândido, ou o optimismo”. No mesmo movimento, criou-se uma corrente adversa, o “contra-optimismo”, e há quem defenda que o pessimismo de Schopenhauer, já no século XIX, corresponde ao estado último do desenvolvimento dessa última corrente.
A verdade é que nem optimismo nem pessimismo são conceitos com grande interesse filosófico e que nunca atravessaram o espírito de Leibniz, embora tivessem ocupado, na sua juventude, o de Kant, algo do qual este futuramente se arrependeu. É até legítimo, em grande medida, supor que os estados de espírito ao qual se referem têm a sua origem em condições fisiológicas. Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente para o optimismo; alguém que se sente fisicamente mal, para o pessimismo. Quem pensa, procurando abstrair-se do estado, feliz ou infeliz, das suas vísceras, não é optimista nem pessimista. Busca, se possível, alguma racionalidade nos seus pensamentos.
O que não impede, é claro, que os conceitos sejam usados a torto e a direito como se tivessem algum valor substantivo. Em Portugal, por exemplo, são muito acarinhados. O optimismo, nomeadamente, é particularmente enaltecido, e o pessimismo extremamente mal visto. Marcelo é um caso exemplar. Vê-se a si próprio como um “optimista racional”, um conceito difícil de aprofundar, porque junta dois termos que não comunicam entre si, e vê em António Costa um “optimista crónico e ligeiramente irritante”. No fundo, a acreditar na sinceridade dos propósitos, seriam duas variações do Dr. Pangloss, uma fraca e outra forte.
Estas elocubrações não teriam em si mal algum se não tendessem a lançar uma cortina de fumo sobre os nossos problemas reais, que se estão nas tintas para optimismos e pessimismos e restantes subjectividades viscerais. Não nos arriscamos, felizmente, a ser de novo objecto da mais profunda curiosidade intelectual da Europa pelas desagradáveis razões de 1775. Mas uma curiosidade menor e burocrática é sempre possível, por razões afins às de 2011 (ou de 1977, ou de 1983). E, a ouvir tanto falar de optimismo, com o desvio em relação à realidade que a coisa implica, uma pessoa apanha-se a pensar que é racional julgar vir algo assim e ter medo. Nem as igrejas nem os bordéis sofreriam muito: os nossos bolsos sim. E duma tal catástrofe seremos mesmo responsáveis. Em especial alguns. Nem Deus nem a natureza estão já compreensivelmente disponíveis para aparecerem na história como culpados. Nem sequer, como quer a nova teologia da esquerda, disfarçados de Europa.