Se precisássemos de demonstrar como todos as discussões políticas dos últimos anos não corresponderam a verdadeiras divergências, mas a simples chicana oportunista, estas últimas semanas teriam fornecido todas as provas necessárias. Porque subitamente, só porque mudou o governo, tudo o que era mau tornou-se bom, e vice-versa. Ainda se lembram de quando mandar os professores emigrar era crime? Ainda se lembram de quando discutir a situação da banca era uma urgência nacional, e fazer inquéritos a bancos era o desporto mais popular a seguir ao futebol? Agora, discutir é “destabilizar”, inquirir é “perseguir”, e mandar emigrar professores já não é mandar emigrar professores.
E que aconteceu às velhas soluções infalíveis? Desde a crise financeira de 2008, que nos explicam que o problema é a banca, e que o problema da banca é não ser do Estado. Se a banca estivesse na mão prudente dos ministros em vez de na garra ávida dos banqueiros, não haveria remunerações escandalosas, créditos mal parados, despedimentos, nem, acima de tudo, injecções de capital à custa do contribuinte. Ouvimos isto a propósito do BPN, do BES, e do BANIF. Então, porque é que o banco do Estado nos vai custar mais dinheiro do que todos os bancos privados juntos?
A situação da CGD não é acidental. Se o Estado fosse a solução, nunca teria havido qualquer crise bancária. Porque a característica principal do actual regime é, na banca e noutros sectores, a diluição da fronteira entre o público e o privado. A banca é a divisão mais regulada e mais politizada da economia. Os chamados bancos privados resultaram do engenho dos governos nas décadas de 1980 e de 1990, quando convidaram banqueiros, lhes proporcionaram concursos, e arranjaram parceiros internacionais. Quase tudo na banca portuguesa começou e acabou em conversas com ministros e primeiros-ministros. A lenda de que os banqueiros andaram à solta é uma invenção conveniente. Mas os governos fizeram os bancos, tal como fizeram o Estado social e a prosperidade do país, recorrendo ao petróleo que descobriram na década de 1990 – o crédito barato da integração monetária. Quando esse crédito acabou, começaram os problemas – no Estado, na banca, nas empresas e nas famílias, porque tudo dependia da dívida, como nas monarquias da Arábia todos dependem do petróleo. Foi o sistema que o poder criou.
Agora, a propósito da banca, fala-se de reestruturação e de “governance”. Terá havido erros, más práticas, e até azar? Provavelmente. Mas acima de tudo, houve projectos de poder. A OPA do governo de José Sócrates sobre os bancos e as maiores empresas portuguesas já foi descrita (como aqui, por Pedro Lomba), embora nunca investigada. A CGD terá sido um instrumento fundamental da tentativa socrática de fazer coincidir poder político, poder económico e poder mediático — uma espécie de PREC de gabinete, secreto, mas não menos devastador do que o de 1975. Parte do dinheiro perdido da CGD parece representar o custo dessa aventura, como notou ontem João Miguel Tavares. Mas a ganância nunca poderia ter ido tão longe se não estivesse legitimada por uma convicção: a de que a política pode e deve substituir-se à economia. Demasiados políticos se julgaram banqueiros prodigiosos. Fizeram os bancos, e depois acreditaram que eles, mais do que ninguém, saberiam distribuir os créditos bancários.
Foi este o regime de que a CGD parece ter sido o coração financeiro, a crer nas listas de imparidades. Dizem-nos agora que um inquérito será “destrutivo”. É então melhor não sabermos nada? A confiança em Portugal já só pode estar fundada na ignorância? Tudo começa a parecer-se demasiado com um fim de regime.