É oficial. A Europa está mergulhada numa crise sem precedentes. O mais recente sintoma, e porventura o mais grave, é o fracasso das negociações para a formação de uma aliança pós-eleitoral para governar a Alemanha.
A história desta crise, dentro do contexto da grande crise da identidade europeia, conta-se em dois parágrafos: três mandatos e um conjunto de decisões controversas levaram ao desgaste de Angela Merkel e da sua CDU, bem como do SPD (os sociais-democratas), que teve o seu pior resultado desde a II Guerra Mundial. Martin Schulz percebeu que voltar a prestar-se a fazer parte de uma grande coligação poderia levar ao desaparecimento definitivo da esquerda moderada na Alemanha e preferiu a sua sobrevivência política à participação na viabilização de um governo.
Sobraram os pequenos partidos: a AfD, na extrema direita, foi imediatamente repudiada por todos os outros partidos – não fosse a Alemanha um país (justamente) assombrado por fantasmas do passado. Ficaram os Verdes e o FPD (o partido liberal) que não conseguiram chegar a entendimentos com a CDU/CSU em questões vistas como fundamentais, como a política de refugiados, o programa de alterações climáticas e a política fiscal da União Europeia. Os liberais saíram-se mais radicais que os ambientalistas e deixaram a CDU de cabeça em água.
Sobram três hipóteses: a formação de um governo minoritário (que Merkel descarta), um recuo de Schulz de volta à mesa das negociações (que segundo as últimas notícias até poderá ceder, mas não numa solução de grande coligação), ou a convocação de eleições antecipadas, que decorrerá do procedimento de chumbos do governo minoritário no Bundestag e de convocação de eleições antecipadas pelo presidente. Ora, os exemplos recentes da Bélgica e de Espanha, bem como as sondagens relativamente às intenções de voto alemãs, mostram que a única coisa que se pode ganhar é tempo político. Aliás nenhuma das possíveis soluções parece ir muito além do prolongamento do impasse.
Se por um lado todo este processo – a erosão eleitoral dos partidos de centro, especialmente na esquerda moderada, a fragmentação partidária com subidas acentuadas de pequenos partidos de pendor extremista que passaram a influenciar a decisão política, a necessidade de criação de governos de coligações ideologicamente antinaturais e o eventual fracasso das negociações entre os partidos que podem formar governo – se tornou relativamente comum na Europa, o caso da Alemanha reveste-se de uma importância que os anteriores não tinham. Desde logo porque, quer se goste quer não, Berlim é a verdadeira capital da Europa, ainda que tenha as sedes das instituições deslocadas em Bruxelas e Estrasburgo.
Habituámo-nos a olhar para a União Europeia como um conjunto de instituições burocráticas, mas já sabíamos, quer da teoria quer da prática, que não existem instituições seguras sem estados dotados de poder e determinação para o exercer. Se a Alemanha procedeu timidamente desde que se tornou um estado unificado em 1990 (a RDA teve um papel discreto, mas fundamental, nas transformações económicas da União no princípio dos anos 1980), tentando guardar para si o papel de potência económica e civil – enquanto a França e o Reino Unido se entendiam quanto às questões militares – desde 2015 a posição alemã mudou.
Merkel juntou à gestão (desastrada) da crise económica a liderança da crise político-identitária. Criou uma grande estratégia de defesa do modo de vida europeu (que incluía a corajosa defesa do território contra o radicalismo islâmico em precário equilíbrio do cosmopolitismo liberal, nomeadamente na questão dos refugiados e das alterações climáticas). Já em 2016 foi vista em diversas ocasiões lado a lado com Obama, numa espécie de frente antinacionalismo populista. Já este ano propôs-se a reavivar o eixo franco-alemão, depois da eleição de Emanuel Macron, numa atitude de desafio a Donald Trump: se os EUA passaram a desprezar os valores liberais, nós vamos mantê-los. Vamos reformular a política económica europeia e fazer finalmente avançar a Cooperação Estruturada Permanente (subentenda-se, para que a NATO não seja o cesto onde se põem todos os ovos).
Mas há outra questão que distingue Berlim das demais crises nos países da Europa: as questões de desentendimento dos partidos predispostos a formar uma coligação são assuntos que não dizem respeito à Alemanha enquanto estado, mas sim à construção (ou reconstrução ou desconstrução) europeia. Isso não só reflete a mudança da posição de Berlim como a desorientação profunda relativamente ao futuro das nossas instituições supranacionais.
Dizem os historiadores que há momentos em que diversas áreas regionais entram em “episódios catalíticos”. Seguem-se a crises diversas origens ou momentos de redefinição (não necessariamente negativos). No caso europeu a crise é descrita por Philip Zelicow com uma situação swing (expressão inspirada nos swing states americanos) que pode mudar muitíssimo em relativamente pouco tempo. Para que este cenário se evite é preciso inverter a fragmentação eleitoral, as dificuldades institucionais e a polarização com uma reestruturação de paradigma e a criação de uma nova narrativa que possa reunir consensos essenciais para prosseguir.
Até porque há uma miríade de questões a avaliar, compreender e resolver – além das já referidas acima – como as derivas autoritárias da Hungria e da Polónia, as negociações do Brexit, e as relações com os estados asiáticos (que precisam de renovação por estarem eles também a passar por episódios catalíticos). O fracasso das negociações entre partidos alemães pode ser a peça que faltava para percebermos que há situações que já não se resolvem com remendos. A Alemanha em particular e a Europa em geral precisam de uma espécie de exame de consciência político. E depressa. Antes que seja muito tarde.