Diziam os teóricos das relações internacionais, no fim dos anos 1980, que as organizações se mantinham enquanto os Estados que as compunham maximizavam o seu benefício em relação aos custos de lhe pertencer. No entanto, havia exceções: alianças que se começaram a formar depois dos anos 1940, no Ocidente, eram mais do que isso. Especialmente a Comunidade Económica Europeia, em que os Estados-membros abdicavam de parte da sua soberania para pertencer a um clube exclusivo de valores, que passava a ter direitos de lei sobre os parlamentos nacionais. Quer queiramos admitir, quer não, os benefícios para os Estados que aderiam eram um belo pacote financeiro, que as populações, ainda que receosas pela eventual perda de identidade nacional, lá iam aceitando.

O “pooling” da soberania, como lhe chamavam os teóricos, numa palavra pomposa inventada para a nossa União, continuou a crescer e a multiplicar-se por áreas e países. A integração europeia passou a ser um estudo de caso internacional e quem andava nos corredores de Bruxelas atava fios atrás de fios, para ter a certeza que os nós eram tão difíceis de desatar que não havia tentações. Pouco a pouco fomo-nos esquecendo daquilo que a Europa verdadeiramente é, e fomos acreditando que tanta coesão e amarra só poderia dar uma espécie de superestado. Nos tempos áureos, pensava-se que esse superestado faria da Europa um grande ator internacional, que assim fugiria do seu destino de decadência entre as nações. A prosperidade económica sem precedentes acabaria por levar a uma natural união política e a uma identidade que se sobreporia à nacional.

Nada disso aconteceu, por uma razão muito simples. A Europa, naquilo que verdadeiramente importa, é uma organização de Estados-nação. É uma organização em que os Estados competem entre si pelo seu interesse nacional. É uma organização em que os países são solidários só enquanto essa solidariedade não os prejudica. Mas, ironicamente, é precisamente essa a condição necessária para que se encontrem soluções em tempos de crise. É o embate entre interesses nacionais e a conciliação desses mesmos interesses em formas diplomáticas, que permitem que cada líder salve a face e possa continuar a ganhar eleições nacionais que possibilitam avanços na construção europeia.

Foi o que se passou na Cimeira Extraordinária que desencadeou o desbloqueio de um conjunto de mecanismos financeiros que se somam numa espécie de Plano Marshall para a reconfiguração da economia europeia.

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Como todos sabemos, havia dois grupos de países com posições irreconciliáveis. Mas ao contrário do que se passou nas outras crises europeias recentes – a de 2008 e a dos refugiados – havia também um Estado poderoso que, desta vez, não estava disposto a deixar que o impasse se mantivesse eternamente. Angela Merkel percebeu que a sobrevivência do projeto europeu dependia da sua liderança e fez o que devia ser feito. Apoiou sem reservas o plano francês de mutualização da dívida europeia e ofereceu contrapartidas aos chamados “frugais” que exigiam “garantias” que nunca poderiam ser aceites por outros países. Ainda que discreta – Merkel fez-se sempre fotografar com Ursula von der Leyen e Emmanuel Macron e deixou o presidente francês fazer o “discurso de vitória” – a liderança alemã faz toda a diferença.

Com este passo, a Alemanha e a Europa criaram três novos caminhos. Em primeiro lugar, Berlim criou para si própria um papel que nunca antes quis desempenhar – o de hegemonia política europeia. É possível que a relutância alemã venha a criar entraves neste caminho, mas percebemos que, sem liderança, não há cimeiras extraordinárias que deem conta do recado. Esta semana marca uma mudança fundamental no ideal europeu de que o consenso entre Estados é exequível sem presença de um líder. E ainda bem, porque se havia ilusão prejudicial ao projeto europeu era esta.

Em segundo lugar, a Europa transforma o seu rumo político. Daí que faça sentido comparar os fundos europeus com uma espécie de Plano Marshall. Não só porque os Estados são obrigados a fazer aprovar planos de reconversão económica, como esses planos contemplam novos objetivos políticos – nada menos ambicioso que uma transformação da economia europeia rumo a uma maior independência das cadeias de produção e distribuição e a criação de riqueza através uma nova industrialização mais verde e tecnológica.

Em terceiro lugar, porque a União abre um precedente histórico – a criação de uma dívida externa europeia, que terá que ser paga através de um conjunto de mecanismos a inventar, mas que ligarão os Estados-membros a um destino económico comum, começando assim a responder (mais uma vez politicamente) a um sistema internacional diferente, mais competitivo e menos adequado à forma como a União Europeia e os países europeus têm organizado a sua política externa.

Ora se assim é, os teóricos dos anos 1980 tinham razão. Mais uma vez, é uma crise que empurra a Europa para mais integração. Afinal, é bem possível que dentro de alguns anos estejamos a pagar impostos europeus. Sim, por um lado. Mas sem o reconhecimento que a Europa, nos momentos-chave, é uma organização de Estados-nação e que essa organização precisa de uma liderança para funcionar, o projeto europeu pode bem desmoronar-se. Já esteve quase, mais do que uma vez, na última década. Que esta Cimeira nos sirva de lição para que não haja tentações de voltarmos a acreditar que somos o que não somos. Em política, as ilusões têm um preço muito alto. E desta, foi mesmo por um triz.