Agosto de 2014. Publico, no Observador, um artigo de opinião sobre a (falta de) exigência no acesso à carreira de professor e o seu efeito na degradação da qualidade do ensino público. Nesse dia, um vulcão de ódio explode nas minhas contas de e-mail e facebook. Na caixa de comentários do jornal, dezenas ocupam-se a escrutinar (e a inventar) a minha biografia – quem são os meus pais, onde cresci, onde estudei, onde trabalhei, com quem fui visto. A difamação (pessoal e profissional) estende-se aos blogs e às redes sociais. Recebo ameaças de agressão, vindas de quem afirma saber onde moro. Sou insultado e alvo de todo o tipo de calúnias. E, nos meus locais de trabalho, e-mails, cartas e abaixo-assinados exigem o meu despedimento. A discordância não bastou, quem não gostou do que leu tentou lixar-me a vida.

Bem sei que este episódio pessoal nada tem de excepcional. Quem escreve nos jornais colecciona episódios similares com professores, enfermeiros, ambientalistas, defensores dos animais. Ou alentejanos, como aconteceu nestes dias com o (meu amigo) Henrique Raposo, a propósito do seu livro “Alentejo Prometido” (FFMS, 2016). De facto, situações do género, com diferentes graus de gravidade, sucedem vezes demais para que ainda haja quem se faça desentendido quanto ao essencial – estar-se do lado da liberdade de pensar, dizer e escrever, mesmo quando se discorda do que os outros pensam, dizem e escrevem. E, no entanto, desentendidos há.

O ódio existe e existirá sempre. Daí que a questão não esteja tanto no asco incorrigível e efémero que habita as redes sociais, mas em quem o legitima e se alimenta dele. É simplista apontar o dedo às redes sociais, dizer cobras e lagartos do facebook e jurar desprezo eterno à internet. Mas não é eficaz. O culpado das proporções que o ódio cibernético atinge não se chama Mark Zuckerberg nem facebook. E, por maior impacto que tenha a sua boçalidade, os principais inimigos da liberdade não são os idiotas anónimos que berram, queimam escritos ou insultam quem os escreveu. São, afinal, os que se calam, os que receiam enfrentar a multidão, os que justificam as agressões com um “ele pôs-se a jeito”, os que toleram o intolerável e encontram um ângulo para encaixar a violência desde que os violentados pensem de maneira diferente da sua.

Infelizmente, muita gente que deambula no espaço público demonstrou viver num tempo que é mais velho do que novo. Não é de agora e a perseguição ao Henrique Raposo só serviu para nos avivar a memória. Que vários alentejanos não tenham reconhecido as suas raízes no livro do Henrique é respeitável, embora se lamente que o tenham expressado por via da intimidação. Mas que outros (e foram tantos) tenham validado essa intimidação ultrapassa os limites da intolerância. Por exemplo, a Galeria Tintos e Tintas, onde em Lisboa deveria decorrer o lançamento do livro, não quis estar envolvida na polémica, encolheu-se e cancelou. Por exemplo, Nicolau Breyner, em declarações ao DN, gracejou sem graça: “fazem bem os alentejanos em ameaçá-lo. Estou a brincar, ninguém deve ser ameaçado, mas devia pensar bem no que escreve”. Por exemplo, Francisco Louçã reduziu o assunto a um não-assunto e, sem uma palavra acerca das ameaças ao Henrique e à família, sentenciou que “fazer desta coisa que foi cometida por Raposo um caso nacional é que só mesmo por desfastio”. Os cobardes, os que acham que se deve “pensar bem” antes de escrever, e os que desdramatizam a violência contra os seus adversários políticos. Eis aqueles que dão força à intimidação das redes sociais. São eles os maiores inimigos da liberdade de expressão.

Habituámo-nos a que o exercício da liberdade seja um acto trabalhoso, de bravura e de resistência contra a javardice. Mas habituámo-nos mal. A liberdade tem um preço, já se sabe, mesmo que não devesse ser assim. Mas o que poucas vezes se assinala é que esse preço só se cobra a alguns, já que as liberdades que se reconhecem a uns não se toleram a outros. O Henrique Raposo não foi o primeiro a escrever sobre a relação amoral da região com o suicídio ou sobre a opressão das mulheres no Alentejo dos seus avós (e, de resto, ainda hoje). Mas ao Henrique não se perdoa que o tenha feito. Afinal, tudo o que separa a tolerância da intolerância é um nome – o do autor. Pode ser que, da próxima vez que se marchar pelos direitos conquistados no passado de Abril, haja alguém que lembre a batalha concreta do presente: a liberdade no Portugal de 2016, porque depende de quem a exerce, ainda não é um valor absoluto.

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