Cas Mudde e Cristóbal R. Kaltwasser, especialistas em matéria de populismo, fazem uma distinção importante: este fenómeno pode aparecer no exterior do espectro político tradicional – o que acontece a maioria das vezes – ou no interior dos partidos políticos estabelecidos. Esta última forma é mais rara (as estruturas partidárias são suficientemente prudentes para se tentarem manter afastadas destes fenómenos) mas muito mais eficaz. Como nos mostra a história recente, o envolvimento de populistas do Partido Conservador britânico – Boris Johnson é o exemplo típico – em muito ajudou nos resultados do referendo do Brexit. Da mesma forma, Donald Trump não teria possibilidade de ser eleito fora do sistema político-partidário norte-americano. Façam um pequeno exercício: pensem como o mundo seria diferente se estes dois acontecimentos – o Brexit e a eleição de Trump – não tivessem acontecido. Nenhum outro populismo tem um impacto tão grande na vida política do mundo transatlântico.

Tudo isto a propósito de uma investigação que faço há meses para um livro sobre continuidades e mudanças na política americana depois de Donald Trump, em coautoria com Tiago Moreira de Sá. Há duas conclusões que avanço já. A eleição de um populista-nacionalista para a Casa Branca foi possível pela conjugação de uma série de fatores, entre eles mudanças sociais drásticas mas graduais que começaram nos anos 1970 (e que se tornaram evidentes em 2008 quando rebentou a bolha imobiliária) e uma crise profunda no Partido Republicano, que a seguir a Ronald Reagan entrou numa travessia (ideológica) no deserto da qual ainda não conseguiu sair, adensada pela presidência de George W. Bush – que lançou os conservadores americanos numa crise moral e numa grande desorientação relativamente ao caminho a seguir.

Aqui, é fundamental acrescentar um episódio muito menos referido nos livros de história recente, mas que é crucial na forma como se desenvolveu a crise republicana: a ascensão, nos bastidores, de uma figura de segunda linha, Newt Gingrich, que transformou as estruturas internas do partido nos anos 1980 e 1990, abrindo caminho para o aparecimento primeiro do Tea Party e depois do primeiro presidente populista desde Andrew Jackson (que governou entre 1829 e 1837).

Publicamente, a nível nacional, Gingrich só teve um cargo de relevo: foi o porta-voz republicano no Congresso entre 1995 e 1999. Depois foi candidato às primárias em 2012, mas foi facilmente batido por Mitt Romney. Mas, como nos conta George Packer no mais informativo livro que li sobre o declínio económico-social americano, The Unwinding (sem tradução em português), a sua verdadeira contribuição histórica radica nas mudanças que operou na direita americana. A sua carreira política começou no final dos anos 1960, a reboque da campanha populista de Richard Nixon. Mas se para Nixon o populismo foi essencialmente uma forma de captar o eleitorado democrata descontente, governando depois como um conservador clássico, Gingrich tinha duas verdadeiras causas: proteger a “civilização” e a “maioria moral” da nação norte-americana e transformar as “velhas estruturas do sistema político partidário”.

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Assim, passou os anos 1980 a recrutar e ensinar quadros para o partido. Convenceu-os que os republicanos tinham que zelar pelos valores do povo contra elites corruptas – políticas, empresariais, lobistas, promotoras de interesses especiais –, explicou-lhes que os eleitores respondem fundamentalmente a “símbolos” e “emoções” e treinou-os naquilo que hoje chamamos discurso populista. Conseguiu que uma geração de políticos adotasse uma postura inflamada e cheia de soundbites vazios, mas com ressonância no que os eleitores queriam ouvir.

Simultaneamente, criou um novo programa eleitoral para os republicanos, o “Contrato com a América”, que prometia diminuir o governo em número de cargos e na intromissão na vida dos cidadãos (para travar o acesso das “elites corruptas” aos lugares do poder), baixar os impostos sempre que possível e promover a iniciativa privada (piscando o olho à classe média), e fazer reformas profundas nas leis de responsabilização cívica e do estado social (estas para captar a simpatia da classe trabalhadora). Todo um programa populista-nacionalista, em oposição a Bill Clinton, acusado por estes novos republicanos de representar exatamente o contrário do que defendia o manifesto: um promotor liberal da expansão do estado – nomeadamente na recolha de impostos e no aumento dos gastos do estado em questões secundárias, não diretamente ligadas aos problemas imediatos da população americana, nem a questões centrais de interesse nacional.

Com este “Contrato com a América”, os Republicanos tiveram uma vitória muitíssimo expressiva nas eleições intercalares de 1994. E George W. Bush, o senhor que se seguiu a Clinton na Casa Branca, adotou a mesma linha, até ao 11 de Setembro – ainda que lhe chamasse “Conservadorismo de Compaixão”. Mais, como diz Packer desassombradamente, “Gingrich estava a mudar radicalmente [quer] Washington, [quer] o Partido Republicano. Talvez mais que Reagan – talvez mais que qualquer outra pessoa.” Depois escapou-lhe a história. Será provavelmente recordado como uma figura secundária. Mas as mudanças que operou, essas são duradouras. Vieram para ficar. Talvez não seja exagero dizer que o Tea Party e mesmo Donald Trump tiveram lugar entre os republicanos precisamente por causa de Gingrich. Que, com as transformações que operou na sombra, lhes abriu as portas à recetividade do partido e do eleitorado ao populismo nacionalista de cariz reacionário. O tipo de populismo (encrostado no sistema partidário) que é mais raro, mas muito mais contundente – como foi referido no início.

Concluo com uma nota. Muitas vezes perguntam-me porque não trago para as minhas opiniões o caso português. Respondo sempre que Lisboa é particularmente diferente do resto da Europa e dos Estados Unidos devido ao acordo parlamentar que comprimiu os partidos de protesto num acordo parlamentar que não lhes permite escalar o discurso e lhes tira parte da liberdade para fazer oposição mais aberta ao governo que apoiam. Mas as recentes eleições autárquicas revelaram candidaturas populistas (quase todas perderam), entre elas a de André Ventura que desmereceu, durante a campanha eleitoral, o apoio que tinha do CDS pelas suas posições racistas e o seu discurso incendiário, mas que manteve o do PSD. Ventura quer agora ter uma posição na política nacional. Sem comparações excessivas, que o percurso de Gingrich nos sirva de lição para que por aqui não se cometam erros que se mascaram de vitórias no imediato, mas podem ter consequências importantes no médio-longo prazo. A política exige prudência. O que hoje parece inofensivo pode ter consequências graves e inadvertidas amanhã.