Não sei em que pensam os governos quando concebem perdões e amnistias. Mas sei em quem não pensam. Obviamente não pensam naqueles que procuraram cumprir as suas obrigações. Que tantas vezes com dificuldades lá conseguiram, mais uma vez, pagar os inúmeros impostos e taxas ou executar as mil e uma exigências dos mais diversos e esquizofrénicos regulamentos.

O cidadão que procura cumprir com aquilo que a sociedade em que vive tem como bem comum é não só o mais subestimado dos cidadãos como uma espécie de parvo ao dispor de quem governa. Dele não se esperam revoltas nem contestações: uma vez cumpridor, cumpridor para sempre. Todos os dias são criados regulamentos, normas, disposições a pensar nele. No cumpridor, claro. Caso não cumpra todos os procedimentos logo lhe cai em cima a ameaça de multas absolutamente desproporcionadas e obviamente concebidas por quem passou directamente das universidades para o sossego dos gabinetes disto e daquilo. (Já repararam na sanha contra as câmaras de videovigilância no pequeno comércio? Há algo de profundamente perturbante na cabecinha de quem concebe e aplica regulamentos que multam em milhares de euros os comerciantes vítimas de assaltos que, na sua ânsia de identificar os assaltantes, caem na asneira de entregar à polícia as imagens dos furtos recolhidas por câmaras que não estão devidamente registadas.)

Dos pêlos nas pernas para os vendedores de bolas de Berlim à percentagem de mulheres nos conselhos de administração das empresas cotadas, sem esquecer o admirável mundo novo que se nos prepara sob o lema “quem não deve não teme” (em que todos somos culpados até conseguirmos explicar o que fazemos com o nosso dinheiro), temos assistido à criação de um aparelho de Estado cada vez mais intrusivo no quotidiano de quem cumpre – já vamos na quantidade de açúcar e no design das ilustrações das ementas! – e desleixado nos seus poderes inalienáveis. Já para os outros, os não cumpridores, reserva quem governa muita sociologia e uma atitude magnânima.

Vem isto ao caso do anunciado perdão fiscal. Não é este o primeiro governo a tomar tal medida e não será certamente o último. A única originalidade é que desta vez não se lhe pode chamar perdão fiscal mas isso faz parte das velhas técnicas da novilíngua em que os radicais são exímios. O que me suscita dúvidas é o que vai na cabeça dos cumpridores. Pergunto-me: durante quanto tempo continuarão a assumir as suas obrigações? Alguma vez alguém os premiou por isso? Alguma vez lhe deram um bonus?… Não vale pena pois não? Acredita quem governa que eles vão fazer tudo o que devem porque o sentido do dever assim os obriga. Isso é verdade, no que ao fisco e parafernália regulamentadora respeita. Mas politicamente, e sobretudo se o tema for segurança, a disparidade de tratamento por parte de quem governa, a quem cumpre e a quem infringe a lei, tem estado a provocar clivagens que não se podem ignorar.

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Seja em Inglaterra, onde à força de se ter de fazer de conta que não havia um problema com a emigração se acabou com a emigração a condicionar o voto no Brexit (as razões que levaram os ingleses a votar a favor do Brexit não são muito diferentes das que estiveram por trás do voto contra a constituição europeia em França e na Holanda. Acontece simplesmente que depois do voto Não à constituição se fez de conta que nunca tal tinha acontecido,) Seja na Colômbia, onde a fazer fé nos títulos redigidos no sossego das redacções da Europa e dos EUA se votou “contra a paz”. Seja em França onde a Frente Nacional cresce em cima da ormetà que por ali vigora sobre os problemas provocados pelos fundamentalistas islâmicos e sobre a criminalidade (para que se perceba o nível de silenciamento que se atingiu em França, naquele país discute-se todos os anos se são ou não revelados os números dos carros destruídos na noite da passagem de ano!)… Em diferentes países e continentes, resultados eleitorais aparentemente absurdos conduzem-nos invariavelmente a uma espécie de revolta contra aquilo que as populações entendem ser um sistema de dois pesos e duas medidas: os mesmos governos que exigem aos seus cidadãos um cumprimento rigoroso das leis, normas e disposições, toleram, permitem e aceitam a determinados grupos comportamentos absolutamente contrários ao que está estabelecido.

A primeira reacção da muito activista imprensa que nos rodeia é injuriar aqueles que votam contra o que eles têm como único e correcto sentido para uma História que imaginam conhecer antecipadamente. Retrocesso, estupidez e ignorância são alguns dos termos que se fazem ouvir, uma vez contrariada a sua narrativa já escrita. Veja-se o caso do referendo na Colômbia ao acordo com as FARC: a vitória do Sim era dada como mais que certa, os observadores internacionais actuavam como activistas do Sim, as sondagens garantiam que o Sim ia ganhar folgadamente. Mas o Sim não ganhou na Colômbia pela mesma razão pela qual em 2005 os brasileiros votaram maioritariamente contra a proibição da posse de armas: o que, visto a partir da segurança dos edifícios governamentais, dos bairros mais endinheirados e dos locais da moda cheios de artistas e auto-denominados criadores era uma medida pacificadora – caso do desarmamento no Brasil – pode tornar-se numa medida assustadora para quem é mais pobre e indefeso, logo não tem seguranças particulares nem polícia por perto e portanto só lhe resta acreditar que possuir uma arma é a única forma de se defender da violência que o rodeia. Ou, caso da Colômbia, o receio de que a passagem do terrorismo para a política, com todos os garantismos inerentes ao estatuto de deputados, dê aos até agora membros das FARC a possibilidade de levarem, para mais com cobertura legal, a sua rede (narcotráfico incluído) a zonas onde, com as armas, nunca chegaram.

Como vivemos numa espécie de ilusão mediática acreditamos que só existe o que os jornais e televisões mostram. Mas acontece que nas democracias há um local onde a sós consigo cada cidadão pode manifestar-se: a cabine de voto. Esse grupo às vezes maioritário, esse grupo que, nas sondagens, aparece invariavelmente como perdedor e que raramente um jornalista consegue entrevistar, está a usar a cabine de voto, para dar conta da sua insatisfação, quando não da sua revolta, perante um Estado que acreditam ser tolerante com quem desrespeitou a lei e severo com quem a cumpriu. Para já, esta atitude restringe-se muito às questões ligadas à segurança mas pode alargar-se a outros temas.

Não que nos assuntos fiscais os governos (transformados que estão em seres ligados à máquina da receita fiscal) nem podem perguntar nada. Mas convém que não se esqueça que um dia, feitas as contas, os cumpridores podem concluir que mais lhes valia estar do outro lado. O dos que levam perdões. Afinal, vamos lá falar a sério: cumprir compensa?