De cravo, como a esquerda, mas não na lapela, como a direita, o Presidente da República deixou à nação um paradoxo quase tão difícil como aqueles com que a Esfinge costumava derrotar toda a gente até Édipo chegar: por um lado, ensinou que havia em Portugal “dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à governação, ao modo de se atingir as metas nacionais”; por outro lado, exaltou os consensos não só como urgentes, mas possíveis, e indicou até os “sectores” ou “áreas” mais propícias a compromissos (Saúde, Justiça, Segurança Social, etc.). Pelo meio, recomendou: “unamo-nos no essencial”.
Em que ficamos, depois desta lição presidencial? Os portugueses estão divididos entre “dois caminhos”, ou, pelo contrário, bastará um pouco de “bom senso” para se unirem no “essencial”? Comecemos pelos caminhos, antes de ir ao essencial.
Segundo o presidente, os dois caminhos correspondem a “duas fórmulas de governo”, que se distinguem por preferências acerca do “papel do Estado” e do modo de “criar riqueza”. Este é um ponto fundamental. A maior parte da oligarquia política, quando tem de falar das suas divergências, perde-se em chicana barata. Se perguntássemos ao PS, ao PCP ou ao BE o que os separa das oposições, dir-nos-iam talvez que eles desejam o bem-estar, e que os outros pretendem condenar os portugueses a uma existência de “baixos salários”. Na versão do PSD e do CDS, seriam obviamente eles a desejar o bem-estar, enquanto o governo e os seus apoiantes insistem num “despesismo” que levará Portugal à bancarrota.
Nada disto é estranho: a melhor maneira de nos posicionarmos em política é sempre como alternativa a uma qualquer calamidade. O presidente convidou-nos a ver os dois “caminhos” para além dessas miopias facciosas. Chamou-lhes “fórmulas de governo”. Teria sido mais exacto descrevê-los como “modos de vida”: num dos modos de vida, o poder político controla a maior parte dos recursos e dirige a vida de cada um; no outro, o poder político deixa os recursos aos cidadãos e garante a sua autonomia; a um dos modos de vida, chamemos-lhe, se for preciso, socialista; ao outro, liberal (mesmo que ninguém, hoje, aceite o nome).
O presidente não negou, portanto, a divisão gerada pela pluralidade política, mesmo que tenha talvez tentado desdramatizá-la, ao encarar os “caminhos” como meras “fórmulas de governo”, isto é, técnicas diversas para obter os mesmos fins. Mas até a esse nível, os “caminhos” são suficientemente diferentes para que não seja fácil imaginar qualquer “unidade”, ainda para mais no “essencial”. Estará o presidente da república a encarar as tensões políticas com demasiada complacência? Talvez não. É que há, de facto, uma unidade essencial entre os proponentes das duas “fórmulas de governo”: aquela que resulta de nenhum dos “dois caminhos”, nas presentes condições do país, ser viável.
É esse, talvez, o “essencial”: neste momento, Portugal não tem meios, nem para ser liberal, nem para ser socialista. Os liberais não podem cortar impostos a fim de libertar os cidadãos dos constrangimentos fiscais, nem os socialistas podem “investir” a fim de acumular recursos no Estado. No Portugal de hoje, qualquer arrebatamento liberal ou qualquer obstinação socialista gerariam imediatamente um défice orçamental que seria impossível de financiar nos mercados internacionais. Por isso, vimos, entre 2011 e 2015, um governo acusado de “liberal” a proceder a um “enorme aumento de impostos”, e vemos agora outro governo, orgulhoso do seu “socialismo”, a preparar discretamente “cativações” para o que der e vier. Enquanto a nossa respiração financeira depender da máquina europeia, estaremos todos muito “unidos no essencial”: a austeridade.