Tudo começou com a vitória de Marine Le Pen nas eleições francesas.

A candidata do povo, tal como se intitulou para efeitos eleitorais, prometeu coisas simples, fáceis de entender: a Gália sairia da zona euro, regressando ao bom e velho franco; os franceses abandonariam a zona Schengen e retomariam o controlo das fronteiras; estrangeiros e produtos teriam, após a sua eventual vitória, acesso restringido ao hexágono.

Houve, na escolha da primeira Presidente francesa da História da velha nação de Vercingétorix, uma sensação de déjá vu: tal como na eleição de Donald Trump, uns meses antes, ou na opção eurífuga dos britânicos no verão de 2016, o resultado foi uma surpresa. Ou teria sido, não fora essas precedentes surpresas.

Recordo as longas noites passadas a acompanhar o escrutínio. Quando cheguei a casa – passavam 30 minutos da hora zero – os britânicos tinham, a crer numa derradeira sondagem, optado pela continuidade europeia. Mas não foi assim. Ao final da noite, o pesadelo em que se tornou o sonho europeu acordou-nos para a realidade. A noite da eleição do mais velho Presidente norte-americano de sempre (no ano da sua eleição) não foi diferente. Hillary Clinton parecia irreversivelmente encaminhada para a vitória quando, em três Estados-chave, os eleitores fizeram pender a balança para o seu rival.

Ambas as escolhas apontavam para um novo paradigma: o de um Mundo que reconstrói fronteiras no sentido mais inflexível do termo, com muros, interdições e vistos. Um Mundo em que o Outro é suspeito e mal-vindo. Em que patriotismo e nacionalismo se confundem, pois um bom patriota não pode senão colocar o seu país primeiro, contra tudo e todos, e onde esses todos são, por definição e até prova em contrário, a ameaça.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Muito se esforçam muitos agora por explicar a escolha de Trump com a revolta dos americanos contra as elites. Haveria pois que procurar entendê-lo, e às motivações dos que o escolheram, para melhor o combater. Pois eu, se tenho alguma dificuldade em entendê-lo (partamos desse princípio), facilmente imagino como seriam os nossos países caso o seu programa, valores e objectivos, triunfassem. Esse Mundo que imagino parece-me demasiado parecido com outros que a Humanidade conheceu, assentes em valores e objectivos similares.

Um Mundo de barreiras oposto a um Mundo sem barreiras. Curioso é que, sempre que fecho as portas ao Mundo, ele fecha-mas a mim; ora o Mundo é muito maior do que eu, não é? Maior do que Trump, a Europa ou o Ocidente, até. Durante 500 anos fizemos de conta que ele cabia no espaço da civilização que criáramos; sabemos hoje que somos, portugueses, europeus, ocidentais, uma parte pequena da Humanidade, que há muito deixámos de dominar.

Bom, tudo começou – ou continuou, se lhes agradam os preciosismos – com Le Pen, já Trump reinava, o Brexit fora invocado e a Holanda, paraíso fiscal por excelência, escolhera um primeiro-ministro de extrema direita, islamofóbico e proteccionista. E por muito que digam não se tratar do mesmo fenómeno, e se é verdade que não são situações iguais, são pelo menos idênticas e, sobretudo, baseiam-se na mesma rejeição do globalismo e da tolerância.

De Wilders e Marine começaram de imediato a pôr em prática as políticas prometidas. Apoiadas num Presidente norte-americano anti-europeu e adepto da estratégia (afinal banal) de dividir para reinar, entretiveram-se a desmontar o laboriosamente construído edifício da união monetária. A França declarou a intenção de sair do euro, mas a Alemanha, em que entretanto Schulz e Merkel tinham à justa conquistado uma maioria para governar – ainda – em coligação, avisou que ninguém podia sair da moeda única, assim estipula o Tratado da União Europeia. Sair, só saindo da própria União, à inglesa. A França deixou-se ficar.

Mas a Holanda não perdeu tempo e os 26 começaram a negociar o Holexit, mais ou menos na altura em que se tornou claro que o Reino Unido teria a sua saída, sim, mas limpa – isto é, sem qualquer acordo. O Parlamento britânico, dividido sobre o resultado das negociações com base no artigo 50º, rejeitara a solução dúbia encontrada, e desse derradeiro acto de (não) conciliação entre antigos parceiros fez-se uma ferida profunda que não voltaria a fechar-se. Encorajada pelo exemplo britânico e pelas Grandes promessas de Trump de fazer da Holanda “second”, os holandeses optaram igualmente por uma saída limpa. Em França, entretanto, violavam-se todas as regras europeias – e concomitantemente o direito europeu -, fechando as fronteiras, não apenas aos refugiados e cidadãos de países terceiros, mas aos próprios europeus. Voltaram os controlos fronteiriços de pessoas e bens, os camiões estacionaram de novo à beira das estradas da raia, de Calais ao mediterrâneo, do leste alsaciano e dos Alpes à beirada pirinaica. E ressurgiram as taxas alfandegárias, claro, para produtos sensíveis.

Os parceiros da França reagiram. Fizeram-no caso a caso, e não em uníssono através das instituições europeias, cada vez mais descrentes e impotentes, contra a imposição unilateral de taxas aduaneiras, restrições quantitativas à importação dos seus produtos, em países como a Holanda, o Reino Unido, a França. Estabeleceram as suas próprias taxas face a esses países, enquanto fora da zona euro, em degradação rápida, desvalorizações cambiais competitivas cada vez mais frequentes e agressivas deterioravam as condições da cooperação inter-europeia. O acesso aos mercados de uns e outros tornou-se cada vez mais restrito.

A inflação trepou a níveis há muito esquecidos e países como a Grécia e Portugal deixaram de poder honrar as suas dívidas; e já não havia política monetária comum ou Banco Central Europeu capaz de vir em socorro das infelizes populações do Sul e a única solução, pressurosamente acordada entre a Alemanha e as restantes potências da União (a palavra potencia é usada apenas com valor ilustrativo), foi a saída apressada daqueles países da moeda única, mesmo contra o Tratado. A Grécia saiu e a sua moeda desvalorizou-se mais de 40% de um dia para o outro, o escudo português pouco menos do que isso. Gregos e portugueses ficaram (ainda) muito mais pobres, de um dia para o outro.

Em breve nada sobrava da antiga União. Recorrendo com frequência a desvalorizações cambiais, esmagados pelo peso das suas dívidas, os países mais pobres recorriam ao FMI mas o FMI, qual xerife solitário e omnipotente, impunha condições draconianas. A austeridade dos anos dez parecia brincadeira comparada com os novos tempos das nacionalidades triunfantes.

E a Europa, toda ela, mergulhou num ocaso demográfico em que os mais ricos, como sempre, ficaram ainda mais ricos, e os mais pobres, como sempre, ficaram cada vez mais pobres. E como sempre também quando a fraqueza se expõe sem decoro nem retorno, é grande a tentação, e os predadores emergem. O velho continente cumpriu o seu destino e tornou-se, de vez, o museu do Mundo, que o Mundo se deleita a visitar, qual pérola arcaica a que em tempos, com admiração e temor, chamaram Europa.

Resta falar da Guerra, a terrível guerra final a que a divisão e a zizania também conduziram o continente; mas para falar disso já me falecem as forças.

PS. A minha máquina do tempo, como os amigos leitores sabem, falha algumas vezes. Ainda pode ser de outra forma, perguntarão? Pode, claro. Mas depende do que fizerem os homens e mulheres de boa vontade, cientes do abismo aberto sob os nossos pés. Não, o populismo triunfante, nacionalista e exclusivista, não é coisa leve, efémera e benigna que passará se formos pacientes e obedientes. Sabemos o que acarreta esquecer o que a História nos ensina.