Chegámos a isto: atreve-se um cidadão a duvidar da bondade da maioria de esquerda, e ei-lo acusado de nervosismo, traumatismo do PREC, extremismo de Guerra Fria, e não sei que outras lesões. É mesmo assim? Somos assim tão abjectos, os que não alinhamos com a calminha vigente? Façamos uma revisão da matéria dada.
Primeiro ponto: a política portuguesa tinha uma regra: o partido com mais votos tentava formar governo. Não estava escrita, mas representava um entendimento entre os actores políticos. A questão é: qual a vantagem de um novo regime onde o poder seja disputado sem regras nem moderação, por partidos desconfiados?
Segundo ponto: António Costa foi o grande vencido das eleições de 4 de Outubro. Falhou em tudo. Não teve uma maioria e ficou atrás da coligação. A questão é: Costa pode ser chefe do governo sem que a tremenda derrota eleitoral afecte a sua autoridade enquanto primeiro-ministro?
Terceiro ponto: António Costa propõe-se governar com o PCP e o BE. A questão é: a entrada abrupta na área da governação de partidos que repudiam os fundamentos da actual democracia, e que viabilizarão um governo de Costa apenas por razões tácticas (“expulsar a direita”), não justifica nem um reparo?
Perante tudo isto, a nossa oligarquia diz-nos que o que fica bem é aceitarmos tudo com “normalidade”, na desportiva, como meninos bonitos e sossegadinhos. Porquê? Porque 2015 não é 1975, e já não há COPCON, nem União Soviética? Mas o problema não é a repetição do PREC. É o risco para o regime da abolição das suas regras, do descrédito dos seus protagonistas, e da falta de clareza política. Teríamos eleições, mas ninguém saberia o que é ganhar ou perder. Continuaríamos a pregar os nossos valores, mas aceitaríamos governos integrados ou apoiados por quem nega ostensivamente esses valores. Nada disto tem importância? Se Catarina Martins não decretar a saída do euro depois da próxima reunião com Costa, não temos o direito de dizer nada?
Há uma razão para a oligarquia exibir tanta calma, tanta indiferença: chama-se Europa. A ideia é que qualquer governo de esquerda, num país entregue ao BCE, teria o destino do Syriza, que acabou a executar o que lhe mandam em Bruxelas. Não é já o Tratado Orçamental que Costa propõe como base de entendimento aos seus futuros parceiros? É curioso: os oligarcas queixam-se muito da “ditadura do dinheiro”, mas depois acreditam e confiam na “ditadura do dinheiro” para os poupar ao tipo de maçadas políticas que quase deram cabo da Europa no século XX. É isso que, de facto, lhes permite aceitar tudo serenamente, incluindo a degradação das instituições e a polarização política da sociedade. Os comunistas e os neo-comunistas pensaram durante muito tempo que para chegar ao poder precisariam de convencer as pessoas de que outro mundo é possível. Mas é precisamente porque já ninguém acredita que outro mundo seja possível que os comunistas e os neo-comunistas talvez cheguem ao poder. Jerónimo de Sousa bem se pode dizer comunista. Para os oligarcas, ele “evoluiu”. Não o levam a sério.
Se António Costa anda por aí a cerzir a sua “frente popular”, é porque para os nossos oligarcas o governo já não está aqui, mas em Bruxelas. A oligarquia prepara-se para aceitar o BE e o PCP no governo como já os aceitou na vereação em Lisboa, porque do seu ponto de vista, Costa não será mais do que o presidente da câmara municipal de Portugal, pequeno concelho de um Estado imaginário cuja capital é em Bruxelas (ou em Berlim) e cuja lei de finanças locais até é muito restritiva.
A oligarquia do regime julga que Bruxelas lhe garante tudo, e que portanto não há perigo em jogar sem regras e em experimentar todos os golpes. É o efeito perverso da integração europeia: em vez de ser concebida como um factor de exigência, continua a ser encarada pelos nossos oligarcas como uma autorização de desleixo e complacência. Há aqui um paralelismo curioso, entre a evolução financeira e a evolução política da democracia portuguesa: até 2011, os oligarcas julgaram que o euro permitia todos os excessos orçamentais, sem consequências; agora, com o reforço do “governo europeu”, convenceram-se de que a tutela de Bruxelas tornou possível toda as brincadeiras políticas. Nunca o regime pareceu tão frágil, e nunca os seus donos se preocuparam tão pouco. Mas os deuses sempre cegaram aqueles a quem querem perder.