Vale a pena voltar ao caso Charlie Hebdo. Como seria de esperar, não éramos todos Charlie. Não eram Charlie, obviamente, os que nunca escapavam ao chicote do jornal e para quem uma coisa é a liberdade de expressão, e outra o Charlie Hebdo. Mas a “esquerda radical”? Sim, a “esquerda radical”, como é que houve gente desse lado com dificuldade em repudiar o massacre? Foi a grande surpresa. Porque se havia na Europa um produto do antigo radicalismo de esquerda era o Charlie Hebdo, onde todas as semanas patrões, polícias e padres eram devidamente humilhados e ofendidos, segundo a mais genuína cartilha anticlerical e anticapitalista. Charb, o director, dizia-se comunista. O que fez gente da esquerda radical renegar os desenhadores assassinados? Uma coisa apenas: o notório asco do Charlie Hebdo ao Islão e aos jihadistas. Mas o que há de comum entre a esquerda radical europeia, ateia, socialista e frequentemente pós-moderna, e o jihadismo, com a sua pretensão de reformatar o mundo exactamente como o Profeta o deixou há cerca de mil e quinhentos anos atrás?
Comecemos pela opção anti-islâmica do Charlie Hebdo. A ideia de Charb era clara: era preciso “banalizar” o Islão, isto é, privá-lo da sua aura sagrada, tal como se fizera ao catolicismo. Porquê esta luta? Porque, entretanto, a sátira dos poderes tradicionais europeus deixara de ser arriscada. Em 1970, o grupo vira a sua revista suspensa por rir com a morte de De Gaulle. Agora, porém, quem se incomoda com mais uma caricatura de Hollande ou do papa? Charb, que tinha um retrato de Estaline no escritório, precisava manifestamente de sentir que os desenhos ainda tinham consequências. Ora, só o confronto com o Islão lhe podia restituir a relevância perdida – e, talvez, o sucesso comercial que escapava ao Charlie Hebdo desde a década de 1970.
Mas a parte da esquerda radical que não desenha e não precisa de vender uma revista satírica vê a questão de outra maneira. A deslocalização e a automação roubaram-lhe a sua velha massa de manobra revolucionária, os operários industriais. Como os substituir? Na década de 1960, o aburguesamento da classe operária já inspirara a Herbert Marcuse a hipótese de ir procurar reforços entre o campesinato do Terceiro Mundo. Mas há cinquenta anos, ainda era necessário sair da Europa e dar-se a muitos incómodos tropicais para encontrar os novos recrutas da revolução. Hoje, os circuitos da imigração despejam-nos aos milhares no velho continente. Não por acaso, a esquerda radical ofereceu-se logo como seu grande patrono. Em Londres, o Respect Party de George Galloway é um exemplo da avidez sem escrúpulos com que o velho esquerdismo procurou uma nova clientela entre a diáspora islâmica.
À primeira vista, a irrupção do fundamentalismo religioso e do jihadismo entre a imigração árabe muçulmana limitou o papel da esquerda radical na condução directa desse proletariado de substituição. Ao mesmo tempo, porém, rasgou novos horizontes revolucionários: os jihadistas são o elemento de confronto violento sem o qual os radicais nunca esperaram destruir a democracia liberal e o capitalismo. São os Baader-Meinhof com o Corão. O “sistema”, para se defender, ver-se-á finalmente forçado a revelar a “violência social” que o sustenta.
O islamismo serviu assim a Charb e à restante esquerda radical de diferentes maneiras: para Charb, era um inimigo perigoso, que emprestava novamente risco e sentido à sua iconoclastia; para outros, é, pelo contrário, um aliado inestimável, capaz de compensar a falta de vigor revolucionário da sociedade ocidental.
Para se aproximar dos seus novos combatentes, uma parte da esquerda radical parece tentada a abandonar os intelectuais irreverentes do Maio de 68, assim como em tempos trocou o operariado europeu pelos imigrantes. Houve quem chegasse a insinuar que, no fundo, Charb alinhara objectivamente com a Frente Nacional na estigmatização do “Islão”. Uma parte do que resta do operariado “indígena” em França já vota na Frente Nacional. Estão os anti-clericais, as feministas e os homossexuais destinados, um dia, a votar também em Le Pen?
O encontro entre o esquerdismo radical e o terrorismo do Médio Oriente estava previsto há muito tempo: na década de 1970, os Baader-Meinhof treinaram em campos palestinianos. É verdade: o jihadismo nega todo o “liberalismo moral” que a esquerda radical geralmente invoca contra o “sistema”. Mas é indiferente que o objectivo jihadista seja uma ordem “reaccionária” (com as mulheres submetidas aos homens, e os homens submetidos aos intérpretes de Deus). O que interessa é que possa produzir a violência necessária para destruir a ordem democrática e liberal. Para o maquiavelismo mais comezinho, os fins justificam os meios. Mas para este maquiavelismo apocalíptico, são os meios que justificam os fins.
À esquerda, o radicalismo assentou sempre no culto da violência, concebida como o grande recurso emancipador (George Sorel, em 1908, explicou o que havia a explicar a esse respeito). Fechada a loja dos Baader-Meinhof e das Brigadas Vermelhas, esse culto pôde parecer — como em Violence, de Slavoj Zizek (que, curiosamente, nunca cita Sorel) — um mero devaneio intelectual, sem passagem para a acção: uma espécie de American Psycho (ou, neste caso, Marxist Psycho). O fanatismo armado da jihad mudou tudo, como no poema de Yeats (“a terrible beauty is born”…). Zizek ainda espera substituir o Corão por Marx no bolso dos jihadistas. Mas isso seria apenas um bónus. O que o excita, no caso do Charlie Hebdo, é que, finalmente, há “paixão” contra a democracia liberal. Não são os “bons” (a esquerda radical doutorada em Marx e em Lacan) que manifestam essa paixão? Algumas das suas vítimas são até camaradas de radicalismo? Paciência. Sigamos a paixão, neste caso: o jihadismo.
E o que nos importa a esquerda radical? Na Grécia e em Espanha, faz parte de movimentos com boas perspectivas eleitorais. Nos outros países, não tem tantos votos, mas assombra as universidades e os media. Convém-nos perceber o que se passa por aqueles lados.