Boaventura Sousa Santos está a viver dias difíceis. Tão difíceis que que até produziu “uma reflexão difícil”. Tudo porque, como escreve, é “muito difícil uma análise serena do que está envolvido” no “acto bárbaro” do ataque ao Charlie Hebdo. É compreensível: o evangelizador de Coimbra gosta sempre de “explicar” todo o tipo de barbaridades, mas esta barbaridade, e a onda de indignação e solidariedade que gerou, deixaram-no verdadeiramente submerso. Mesmo assim não desistiu.

Na verdade Boaventura, se começa por conceder que “não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo”, logo a seguir passa ao ataque à “extrema agressividade do Ocidente” e anuncia que “entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade”. No fundo é tudo porque a radicalização é fruto “da revolta contra tanta violência impune”. Para além disso é bom não esquecer que, “ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida” pela linha editorial do Charlie Hebdo (só os muçulmanos, claro, não os cristãos ou os judeus, que a revista tratava da mesma forma sem que isso pareça incomodar o rapper do Mondego e, sobretudo, sem que estes tenham ripostado a tiro).

Esta lógica é velha e relha. É coerente com o pensamento de alguém que, ao escrever, coloca “valores ocidentais” entre aspas. Com alguém que acha que “a defesa da laicidade sem limites” (que limites sugere que devesse ter?) pode ser “uma forma de extremismo”, pois muitas populações “não se reconhecerem em tal valor”. Ou que não se inibe de insinuar que há “relações entre os jihadistas e os serviços secretos ocidentais”. Ou ainda que finaliza esse seu texto “difícil” sugerindo que a comoção gerada por estes ataques se baseia afinal na “ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões”.

A surpresa do texto de Boaventura não é o seu conteúdo – é a sua timidez. É por isso que é “difícil”. Circulando pelas redes sociais e por alguns blogues radicais tropeçamos em cada esquina com “explicações” e “interpretações” semelhantes que só não tiveram mais projecção desta vez porque o Charlie Hebdo era uma publicação de esquerda, as vítimas eram jornalistas e a liberdade de expressão um valor profundamente entranhado na nossa cultura. Se o único atentado de Paris tivesse tido o do supermercado kocher e as únicas vítimas alguns clientes judeus, Ana Gomes não teria ficado isolada, antes teria comandado a carga dos que estão sempre pontos a culpar as vítimas e a desculpabilizar os bárbaros. O que o nosso pregador agora fez foi apenas tentar recuperar o terreno perdido para tratar de dizer, como sempre diz, que os bárbaros somos nós. Vale por isso a pena perder algum tempo com essa ideia de que a culpa é sempre nossa – nossa hoje, nossa no tempo da colonização e da descolonização (sobretudo se for a descolonização da Argélia), nossa desde o tempo da tomada de Ceuta, ou das Cruzadas, ou de D. Afonso Henriques, ou até de Júlio César.

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Primeiro ponto essencial: ninguém entra de metralhadora aos tiros pela redação de uma revista só porque conheceu o desemprego ou porque ficou órfão muito novo (como ouvi sugerir, numa rádio, um antigo ministro). Essa espécie de sociologês de pacotilha é apenas um esconderijo de um marxismo envergonhado à procura de causas objectivas, económicas, para tudo o que mexe à face da terra.

O caminho da radicalização que leva ao terrorismo é, como sempre foi, um caminho ideológico. Os niilistas russos que atiraram as bombas que mataram o czar Alexandre II (o último grande czar reformador, aquele que deu a emancipação aos servos) eram quase todos descendentes de famílias aristocráticas. Os líderes dos últimos grupos representantes do terrorismo vermelho na Europa, o Baader Meinhof alemão e as Brigadas Vermelhas italianas, eram intelectuais que se tinham radicalizado depois de se terem “enfadado” com a sociedade de consumo. Bin Laden era de uma das famílias mais ricas da Arábia Saudita e os membros do comando que concretizou os atentados do 11 de Setembro eram todos relativamente afluentes. Em Espanha o terrorismo medrou na que era a região mais rica, o País Basco. No presente também não são poucas as histórias de jihadistas que se foram juntar ao Estado Islâmico deixando para trás vidas confortáveis ou abandonando os cursos universitários que estavam a frequentar.

Poderia continuar a multiplicar os exemplos, mas o ponto essencial é este: nas nossas sociedades chega-se ao terrorismo não por se ser um excluído, mas na sequência de escolhas conscientes realizadas no quadro de ideologias radicais que propõem soluções globais e sem compromissos. Isso é tanto válido para os fanáticos de extrema-direita que protagonizaram os atentados da “estratégia de tensão” da Itália dos anos 1970, como para os dissidentes do IRA que não aceitam qualquer processo de paz, como para os jihadistas de hoje. Uns foram (ou ainda são) fanatizados por um nacionalismo doentio, outros pela crença no destino histórico do proletariado. Com o tempo, o papel dessas ideologias redentoras do passado passou a ser desempenhado por uma versão dogmática e extremista de uma religião. O mecanismo moral e psicológico é, na essência, o mesmo.

E assim chegamos a um segundo ponto essencial: o papel do Islão. Nos dias seguintes aos ataques, vi de repente mais gente preocupada com a islamofobia do que com o extremismo fundamentalista, o que não deixou de ser surpreendente. Uma coisa é separar a maioria muçulmana da minoria fanática, o que faz todo o sentido. Outra coisa é pretender que não existe nada na cultura, nos hábitos, nos costumes políticos do Islão que possa ser associado a estas derivas radicais. Há, e é bom que o reconheçamos.

Se quisermos pensar apenas no caso do Charlie Hebdo, podemos começar por reconhecer que o Islão tem um problema com a blasfémia. Não sou eu que o digo, é Mustafa Akyol, um prestigiado jornalista turco que explica com clareza como o problema não está no Corão, está na doutrina. Só que é doutrina que é seguida.

Mas é necessário ir mais longe, reler o tão vilipendiado Samuel Huntington e o seu “Choque de Civilizações”, relembrar que enquanto existe no cristianismo ocidental uma tradição de separação entre o que é de Deus e o que é de César, “no Islão o Deus é César, no [Confucionismo] César é Deus e no Cristianismo Ortodoxo, Deus é sócio minoritário de Deus”. Intoxicados com o disparate politicamente correcto da “Aliança de Civilizações”, não temos querido ver a evidência de que a tradição islâmica (não a religião islâmica) integra elementos que contrariam o nosso modo de vida, aquele modo de vida próspero que atrai tantos imigrantes e ao qual querem resistir os doutrinários da sharia e os apóstolos da jihad, aliados aos pregadores do multiculturalismo.

Em Portugal temos a sorte de o nosso mais destacado líder religioso muçulmano, o xeique Munir da Mesquita de Lisboa, ser uma pessoa frontal e ter dito alto e bom som, aos terroristas, aquilo que nenhum de nós poderia dizer sem ser imediatamente acusado de xenofobia ou de islamofobia: “Se não estão satisfeitos em viver num país liberal, podem emigrar“. Infelizmente muitos dos nossos multiculturalistas, como aqueles que escrevem “valores ocidentais” entre aspas, parecem estar eles dispostos a emigrar para deixar o terreno aberto aos que, por exemplo, se podem sentir ofendidos com o laicismo – não só ofendidos como prontos a empunhar uma kalashnikov.

Mas enganam-se: também não é isso que os muçulmanos que cruzaram o Mediterrâneo em busca de uma vida melhor desejam. Eles não saíram de casa, das suas terras, não viajaram para longe, para repetirem as experiências de sociedades falhadas. Por isso eles também estiveram na manifestação de Paris. Eles não sonham, como sonham os fanáticos, com um novo califado. Querem uma vida melhor, dia atrás de dia, não um paraíso na terra. Por muitos problemas que tenha a sua vida nos banieules de Paris, é ali a sua vida e é com espanto e mal estar que assistem às fugas de adolescentes para a Síria ou para o Yemen, que não conseguem compreender, e que fazem tudo para inverter.

E sim, é verdade, temos cometido muitos erros. E talvez o principal seja este de estarmos mais depressa dispostos a abandonar os nossos princípios, a nossa forma de viver em sociedade, valores que foram consagrados como universais, do que a enfrentar a chantagem dos tribalismos e dos fanatismos que estes alimentam. O professor Boaventura, que beneficia sem pudor de todas as mordomias que a nossa sociedade lhe poderia alguma vez conceder, gosta de parecer sempre um descamisado ao lado dos ofendidos da história. Os descamisados é que nem por isso. E ainda menos os ofendidos da história.