1. Marcelo Rebelo de Sousa lembrou-se de Mário Soares num arremedo de comparação entre ambas as actuações presidenciais. Soares de facto respirava “proximidade” com as ruas e o povo mas não precisava dela. Praticava-a com naturalidade, nunca por necessidade ou prioridade. Acontecia. No caso presente está-se perante uma quase obsessão do “ir” e do “ser visto” porque é vital colmatar a (também vital) necessidade de ser amado. Muito amado, afectos, selfies, beijos, bicas, pés-de- dança. O que for e o que sirva, mesmo que o ruido de fundo seja extenuante. Em Belém (porquê?) não se escolhe, não se pondera, não se seleciona, tudo se banaliza num rompante e num repente. Ou tudo se equivale, um leito de morte num hospital, ou uma ginginha ao balcão. Nos meios geralmente bem informados circula que a Casa Civil “é apanhada desprevenida”, o actual locatário é “imprevisível”, está sempre a fugir-lhes das mãos e do Palácio. (O palácio, pensando bem, deve ser uma boa chatice para o seu habitante: há dias fui ao cinema, estava lá o Presidente da República; quarenta a oito horas depois, por razões familiares, visitei pacatamente a inauguração do Museu Digital da Casa da Moeda, estava lá o Presidente. Qualquer dia… que mais?)

Julgo ser uma espécie de insegurança que leva Marcelo Rebelo de Sousa – absurdamente, aliás, mas não dará ele por isso? – a também citar Obama, Hollande e Merkel como felizes exemplos de gente que muito “aparece” e muito pratica o verbo mas nem os regimes nem as Constituições que os regem são os mesmos que o nosso – nem sequer parecidos. Hollande ou Merkel intervém porque governam e nessa concreta qualidade comentam medidas e explicam iniciativas políticas. As deles, justamente.

Enquanto não se perceber que a personalidade de Marcelo Rebelo de Sousa é o factor determinante do “modus faciendi” do Presidente talvez não se perceba o que há dias indignou alguns e deixou a maioria perplexa: tanto colo ao Governo? Será que está mesmo tudo a correr tão bem e tão azul, do crescimento ao investimento, da restruturação (?) da divida ao pregão da “estabilidade”? Ou será afinal o temor inseguro de Marcelo que o governo se desfaça ou dissolva e depois o Presidente não saiba o que fazer? É por isso que ele vai para além do governo como dantes se dizia que Passos Coelho ia (e infelizmente não foi) para “além da troika”?

Convinha lembrar algumas coisas que de tão indesmentíveis, conferem racionalidade política a este escrito, retirando-lhe de imediato o “lado” pessoal para onde alguns me tentarão empurrar, faute de mieux.

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  1. Parece pouco sério assegurar a reestruturação da dívida como se ela estivesse em movimento ou em curso. A sede do poder desse objectivo não reside no afecto cúmplice ( e falso) da dupla Costa/Marcelo, será decidida -se for – em Bruxelas e não decretada por Belém e por muito que isso destoe das nunca disfarçadas intenções dos parceiros da geringonça. (Se alguém disfarça o é chefe do Governo, refém de dois caminhos opostos quanto á Europa: o seu e o dos anti-europeus que lhe viabilizam o poder)
  2. Não há investimento digno desse nome e alguns incipientes vestígios são a peneira que tapa o sol. A economia não cresce, o desemprego não cai significativamente, a competitividade não floresce.
  3. Marcelo não pode ignorar – qualquer estudante de Economia o sabe – que a descida da TSU nunca compensaria a subida do salário mínimo. O afã presidencial parecia-se mais com a congénita embirração com Passos Coelho do que com um súbito desvelo face às agruras do patronato.
  4. É quase risível ouvir Belém martelar o falso crescimento da economia. Enquanto não se crescer mais que a média da União Europeia, não se cresce. E se nem mesmo um feliz conjunto de circunstancias (turismo em alta; baixo do preço do petróleo; o sermos o país do mundo que mais exporta para Espanha e a Espanha ser dos países europeus que mais cresce) fazem desempanar o motor de arranque da economia, convinha apurar as razões em vez de as disfarçar.

E finalmente: em nome de que critério político, de que modelo de sociedade, de que futuro para Portugal, de que destino colectivo, apadrinha tão audivelmente o Presidente uma governação que dia a dia engorda um Estado falido, empanturrado com cada vez mais novos funcionários públicos? (E os outros, todos os outros? E a exangue classe média, afogada em impostos, taxas e desafectos?)

Pergunto: porque se cola então o Presidente da Republica a uma realidade com esta tipologia? Por temer cair no alçapão da “instabilidade”?

2. António Costa vai deixando andar. Cada dia é um dia. E todos os que vierem à rede são o peixe no mar em que navega, mesmo que na viagem nunca haja anúncio de bons portos. Porquê? Porque a juntar ao que acima escrevi e da economia encalhada, há ainda “o ar do tempo”: a permanente irresponsabilidade no lidar com o dinheiro dos outros, criando compromissos financeiros que um dia alguém terá de pagar; a inconsciência da festa a crédito; a hipocrisia do fim da austeridade substituída por uma assassina carga fiscal e pelos duvidosos subterfúgios com que nos vão ao bolso; a novidade de uma Educação regida pelo sindicato e não da responsabilidade da tutela; a exibição de um arrogante “sentido de propriedade” só porque se pontapeou o PSD para fora da área do poder;

Pergunto: como é que o Presidente se presta a publicamente a caucionar elogiosamente esta soma de coisas?

E como moldura para este quadro (não o pintei, apenas o exponho) há a vigilância que cresce no PS: sobre os deles, sobre a família, sobre a casa. Vigilância, humilhação, perseguição pessoal a quem discorda privada e publicamente. Uma permanente e violenta sobreposição do pessoal com o político, com recurso ao insulto soez e rasca, expulsando o confronto político e a saudável discordância de qualquer palco político.

3. Às vezes ocorre-me pensar que pior que este desamável estado de coisas é o facto de Marcelo e Costa coabitarem um com o outro. Serem politicamente coincidentes no espaço e no tempo. As conhecidas características de um e outro e não vale a pena enumerá-las pela enésima vez; os seus respectivos carácteres, as “formas mentis” de ambos, nunca recomendariam, julgo eu, a partilha de responsabilidades públicas num mesmo “reinado”. Nenhum deles nos surge como capaz de potenciar no outro o seu melhor. Foi sempre assim no passado? Não foi e não façamos essa caríssima confusão politica. O que se toma hoje na cena nacional por uma fértil e descrispada coabitação tem outro nome: é uma simultaneidade perigosa.

Não acreditarão, mas gostava de me enganar.