Entendamo-nos de uma vez por todas: ou aquilo a que chamamos extrema-direita não é verdadeiramente extrema-direita, e nesse caso vai por aí uma histeria escusada, ou é-o, e então devemos ter medo, muito medo.

Importa definir o termo “extrema-direita” antes de o usar para qualificar um movimento, um partido ou uma ideia. O mesmo se passa com outros conceitos, que se assume tacitamente serem conhecidos e partilhados por todos (todos neste caso significa mesmo isso). Ora não é assim. A assunção tácita de que o partido de Marine Le Pen, por exemplo, é de extrema-direita e de que todos sabem o que isso significa, pode ser apenas um modismo, uma simplificação ou até, e muitas vezes o será, uma posição ideológica ou política. Na verdade, poucos sabem exactamente o que significa ser de extrema-direita – e se a Frente Nacional o é.

Só definindo o termo poderemos com convicção afirmar, ou infirmar, que a Frente Nacional e o Alternativa para a Alemanha (AfD), muito mais recente, são partidos de extrema-direita. Não vou aqui tratar de populismo, que pode ser de direita ou esquerda radicais, mas de tentar perceber do que falamos quando falamos de extrema-direita e se os partidos assim designados o são, de facto. E antes da análise, permitam-me os leitores expressar uma convicção pessoal e profissionalmente fundada, que não posso (não quero?) calar:

A espécie de vitória do AfD na Alemanha, confirmando-se a sua natureza xenófoba, anti-europeia e anti-globalização, assente numa ideologia de extrema-direita (já veremos se o é), representa um dos factos políticos mais assustadores e ameaçadores – para a nossa cultura e civilização ocidental e em particular europeia – desde o final da segunda guerra mundial.

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Vejamos então do que falamos quando falamos de extrema-direita.

Em primeiro lugar, a extrema-direita radical que, no século XX, atingiu o seu apogeu com os regimes fascista italiano e nazi alemão, pouco tem a ver com os partidos modernos acusados de serem “extrema-direita”; até porque, aspecto crucial, quem apoia esses partidos não se reconhece no rótulo. Marine Le Pen afirmou na televisão francesa em 2013 que “é uma injúria” dizer que a Frente Nacional é de extrema-direita. E caracterizou os partidos europeus “que crescem” e com os quais a FN sente afinidades, como defensores “da nação” e “da soberania”, opostos à União Europeia e ao euro; acrescente-se, atendendo ao programa defendido pela generalidade desses partidos – incluindo a FN e o AfD -, uma política anti-imigração e anti-islão.

Num livro publicado já em 2017, Far-Right Politics in Europe, lê-se que todos esses partidos, distintos embora em muitos aspectos, partilham uma missão comum: “Salvar as respectivas pátrias daquilo que consideram os efeitos corrosivos do multiculturalismo e da globalização, criando uma sociedade fechada e etnicamente homogénea”. Serão pois de extrema-direita os partidos do nacionalismo excludente, contra a imigração e a livre circulação de pessoas, defensores de um proteccionismo económico estrito e da rejeição do multilateralismo.

O AfD, que muitos consideram de extrema-direita, tornou-se o terceiro partido mais representado no Parlamento Alemão, o Bundestag. Fundado por académicos, começou por ser anti-euro, mas nos últimos anos assumiu como ideário político central a oposição à política de portas abertas aos refugiados de Merkel (já largamente revertida). E se alguns dos seus líderes, como Alice Weidel ou Frauke Petry (que entretanto abandonou o partido), representam uma espécie de extrema-direita moderada (?), outros, como o co-líder Alexander Gauland, usam uma linguagem forte e xenófoba; a título de exemplo, face à imagem de uma criança refugiada afogada, Gauland comentou que “não podemos ser chantageados pelos olhos das crianças” e num comício disse que a ministra alemã da integração Aydan Özoguz, de origem turca mas nascida em Hamburgo, devia ser abandonada na Anatólia (“disposed of in Anatolia”).

O partido quer o fecho das fronteiras europeias e, disse Weidel, saldo negativo na imigração para o país. Defende a família nuclear tradicional e é contra os modos de vida alternativos. À semelhança de Trump e Farage, seu assumido apoiante, o AfD critica os meios de comunicação tradicionais. E contudo, a sua plataforma oficial defende a democracia directa e a supremacia da lei e da ordem, não estando sob vigilância do Departamento para a Protecção da Constituição, que proíbe partidos que ajam agressivamente contra a ordem democrática. O debate continua em aberto: é ou não o AfD um partido de extrema-direita, xenófobo e racista?

Os observadores consideram que muitos eleitores do AfD votaram por medo: da invasão dos refugiados; do crescimento das comunidades islâmicas; da diluição da identidade alemã; ou, simplesmente, medo de existir, ansiedade existencial exacerbada pelos acontecimentos do século XX — uma “angst” (ansiedade) germânica em relação a tudo (muito Heidegger). Para os cientistas políticos, este resultado espelha a rejeição da grande coligação CDU/CUS com o SPD (às vezes com os liberais), como Martin Schulz parece ter percebido (também pode ser uma estratégia de sobrevivência política). O papel do medo na escolha de um partido que pode ou não ser de extrema-direita (ainda não decidimos, não é?), não deve ser desvalorizado.

O medo tem sido o cavalo de Tróia dos radicais na Europa. Ao contrário dos antecessores na Alemanha nazi, na Itália fascista e nos outros regimes análogos da Europa do recente passado, eles não querem conquistar o poder pela força armada de camisas cinzentas ou negras, mas através de processos eleitorais legítimos. Parecem estar a consegui-lo.

Optei por não tirar conclusões, neste artigo, sobre se o AfD é ou não um partido de extrema-direita, contrariamente a partidos doutros países europeus como a França, a Holanda ou a Áustria, manifestamente da direita radical, ou até dos auto-proclamados regimes iliberais de alguns países de leste. Na verdade, o partido é demasiado recente, as contradições internas demasiado evidentes e o peso do passado, 80 anos volvidos, demasiado presente. Mas os próximos anos, com foco no areópago de Berlim, decidirão sobre a sua natureza.

Se se confirmar mais uma etapa na ascensão de partidos radicais de extrema-direita na Europa, xenófobos, racistas, defensores da homogeneidade étnica e da singularidade nacional, anti-multilateralistas e anti-integração europeia, então teremos razão para ter medo.

Para ter muito medo.