Vivemos dias de tentativas sem precedentes por parte da imprensa de edificar um cordão sanitário preventivo em torno do recém-empossado presidente dos Estados Unidos da América. Os preconceitos anti-Trump oscilam entre os acantonados em heroísmos histriónicos – “É preciso derrubá-lo com urgência!”, versão polida do vulgar “Agarrem-me senão mato o gajo!” (dominante nas esquerdas) – e os escudados em prudências cínicas – “Ele pode ter razão, mas procede mal… Ele identificou alguns problemas estruturais, mas manifesta um populismo imprudente…” (das direitas). Neste caldo, o debate público sobre política atingiu o zénite da fala vazia.

Vejamos a fragilidade de alguns dos argumentos.

1º Argumento: a história

Um dos princípios básicos aplicados à racionalidade sobre a condição humana pressupõe que a história jamais se repetiu ou repetirá, tal como os filhos nunca são uma mera reprodução dos pais. A constatação pode começar a ser testada nas casas ou famílias de cada um. Para coletivos mais vastos, se é improvável que a história se repita num intervalo de tempo curto e numa mesma sociedade (o caso do atual governo socialista de António Costa em relação ao governo do também socialista de José Sócrates), será muitíssimo mais improvável qualquer paralelo verosímil entre a Alemanha de Hitler, na Europa dos anos 30 do século XX, e os Estados Unidos da América de Trump, no século XXI. Admitir tal paralelo significa aniquilar qualquer esboço de argumentação racional.

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2º Argumento: a virtude

A existir um pressuposto válido para discutir Donald Trump é o de o mundo ser, na atualidade, vítima da proliferação em grande escala de ‘agentes da virtude’, expressão de Paul Theroux. O escritor utiliza-a para descrever as comparações entre a África em que viveu nos anos sessenta e a África que reencontra dilacerada quando, mais de trinta anos passados, vai relatando o estado do continente numa longa, demorada e solitária viagem terrestre pelas terras do interior, do Cairo ao Cabo. Os equilíbrios (sociais, económicos, culturais) que marcaram as esperanças da época das independências deram lugar a diversos sintomas que atestam a regressão civilizacional do continente com contributo ativo e decisivo dos atuais colonizadores pós-coloniais, os ‘agentes da virtude’, brancos das Organizações Não Governamentais (ONGS) besuntados de marxismo cultural.

África é apenas o caso mais perturbador de um mundo dominado por ‘agentes da virtude’ que hoje proliferam por todo o lado, em particular nas instituições que tutelam ou regulam a vida quotidiana de todos nós.

Acrescento outro exemplo elucidativo. Quem hoje ambicionar combater o maior flagelo dos sistemas de ensino massificados dos países ocidentais, a indisciplina, esbarrará num muro construído pelos ‘agentes da virtude’ que dominam por dentro as instituições de ensino.

3º Argumento: a fantasia

Se existíssemos em reinos de fantasia seria plausível crer que um dia um virtuoso destruiria o seu próprio paraíso. A verdade é que o mundo terreno não funciona dessa forma. É precisamente por não ser nem ambicionar ser mais um ‘agente da virtude’, como o seu antecessor na Casa Branca, antes um pragmático intuitivo, por vezes grosseiramente pragmático, que Donald Trump lançou a semente do que pode ser a mais fértil revolução política do presente.

Basta que não se confunda o essencial com o acessório.

Com ou sem intenção, Donald Trump conseguiu que o fenómeno que espoletou assumisse uma carga para lá das fronteiras políticas habituais, invadindo o domínio das questões civilizacionais, culturais, identitárias ou intelectuais. Como nesses domínios não existem retornos, chegou finalmente um princípio de resposta de peso à revolução soviética iniciada precisamente há um século, em 1917. A atual terá, seguramente, efeitos bem menos perversos.

Basta sublinhar que o seu núcleo reside nos Estados Unidos da América do século XXI. Se as garantias de liberdade, segurança e diversidade não forem aí asseguradas não o serão em mais lado nenhum.

4º Argumento: os amigos da onça

Numa Europa Ocidental onde as extremas-esquerdas, mas também as esquerdas, de há um século para cá elegeram os Estados Unidos da América como inimigo público número um, rasurando o muito que os seus países devem ao país de Donald Trump, meros reparos deste deixam grande parte da opinião publicada num êxtase teatral absurdo. Típico de amigos da onça.

Essa mesma opinião publicada vai também utilizando os mínimos pretextos para hiperbolizar um suposto afastamento inédito dos Estados Unidos da América em relação à Europa Ocidental para, daqui a uns tempos, vir elucidar-nos como derrotou as intenções perversas da atual administração norte-americana. Retórica de cantineiro.

5º Argumento: a fala vazia

É usual que as representações dominantes do mundo que nos rodeia assumam tons bem mais conservadores do que a realidade vivida propriamente dita. A última jamais pediu ou pedirá licença para se transformar permanentemente, por vezes de forma acelerada, quando comparada com o tendencial imobilismo do pensamento e dos discursos sobre ela. Esta inevitável incongruência vai ciclicamente deixando os indivíduos literalmente sem palavras que se ajustem à captação e explicação do real vivido.

O fenómeno apenas assume a carga ridícula da fala vazia quando certos indivíduos insistem em expor, com estridência pública, a vacuidade dos vocábulos que impõem a realidades sociais e históricas que lhes são rebeldes. Com isso, encarregam-se eles mesmos de transitar para o nível da esquizofrenia discursiva.

A eleição de Donald Trump tornou essa pandemia visível como nunca.

6º Argumento: os órfãos do racismo

O inquilino da Casa Branca tem o dom de fazer convocar contra si dois dos trunfos mais pesados da retórica mediática e política. Acima deles só o genocídio. Mas, no caso em apreço, o abuso do último tornaria a fraude intelectual escandalosamente óbvia.

O primeiro trunfo pesado anti-Trump é o da acusação de racismo.

Todos deveríamos saber que o racismo é do tempo da discriminação racial instituída a partir do interior dos estados; é do tempo do nazismo; é do tempo da colonização europeia; é do tempo do apartheid sul-africano; é do tempo da guerra fria. Qualquer desses grandes fenómenos políticos, sociais e históricos de referência pertence ao passado, tal como os produtos que geraram. Destaca-se o racismo.

Designar hoje os fenómenos associados às relações raciais (que sempre existirão enquanto os humanos tiverem pigmentações diferentes) de racismo mais não é do que arrastar um cadáver no tempo para convencer os outros de que se trata de um ser vivo ou uma múmia com poderes mágicos.

Dos significados que hoje restam do defunto racismo, o mais útil é o de evidenciar as limitações intelectuais dos que a ele recorrem. Não conseguem sequer criar vocábulos adequados aos novos conteúdos dos fenómenos associados à cor da pele.

O que se está a fazer no século XXI é como se, no século XIX, se continuasse a chamar de escravatura o racismo apenas porque ambos os fenómenos partilhavam elementos comuns.

Em suma, atira-se um cadáver para o interior da Casa Branca e acusa-se o inquilino de homicídio.

7º Argumento: a xenofilia

As acusações de xenofobia estão também transformadas num território fértil da parolice intelectual. Este é o outro dos trunfos pesados da retórica mediática e política anti-Trump e, por arrasto, do movimento social que o sustenta.

Deveríamos pressupor que os que acusam os outros de xenofobia, quase sempre de forma leviana, se sentissem orgulhosos da sua xenofilia, isto é, da sua simpatia inequívoca por estrangeiros a ponto de poderem renegar as tradições do povo a que pertencem. Porém, os corajosos ‘agentes da virtude’ jamais se atrevem a autoidentificar-se como xenofílicos.

E somos nós que permitimos que tais ‘virtuosos’ vivam no melhor de dois mundos. São compensados em poder e votos pelas acusações levianas de xenofobia aos outros, mas sem que nunca os visados lhes tivessem cobrado os custos antipatrióticos da sua xenofilia.

Há mais.

A persistência em utilizar conceitos cristalizados dos séculos XIX e XX torna racionalmente impossível rotular de xenófobo um qualquer europeu que alimente uma qualquer simpatia pelo presidente norte-americano, tal como por qualquer outro estrangeiro. Logo, será impensável qualquer empatia transnacional entre movimentos xenófobos.

O milagre dos ‘agentes da virtude’ é o de tornar aceitável no debate público a coexistência de argumentos irreconciliáveis.

Pior só mesmo os nacionais que se sintam legitimamente prejudicados por certos tipos de imigração serem tratados de forma miserável pelas tradições intelectuais das sua próprias sociedades. Nunca lhes foi concedido sequer o direito a um vocábulo que exprima de forma digna esse sentimento coletivo que, em si, nada possui imoral, indigno ou extraordinário.

Apenas uma das muitas proscrições do marxismo cultural irmanada com as velhas tradições inquisitoriais.

8º Argumento: que se lixem os imigrantes

Os ‘agentes da virtude’ não percebem que partilham o âmago da politização do fenómeno da imigração. Denunciam outros por instrumentalizarem politicamente a imigração, mas com o propósito nada subtil de legitimarem a sua própria radicalização. Isso significa converter certos tipos de imigrantes em seus filhos pródigos.

Considerando que o antagonismo constitui a essência das democracias e das sociedades livres, nada de ilegítimo ocorrerá se o mesmo processo ocorrer em forças políticas de sinal contrário. Em qualquer dos casos, serão sempre os imigrantes propriamente ditos que acabarão por pagar os inevitáveis custos da sua instrumentalização política e eleitoral.

Em termos práticos para a vida quotidiana, serão tão nocivos os protestos com conteúdo político contra a entrada de determinado tipo de imigrantes, quanto os protestos da mesma natureza que pressionem as sociedades a favor da sua entrada. A dimensão dos danos causados à integração dessas comunidades minoritárias nas sociedades de acolhimento será diretamente proporcional ao impacto público da sua instrumentalização política.

Os ‘agentes da virtude’ estão a demonstrar, por estes dias, as razões de serem imbatíveis também neste domínio.

A terminar, já são muito mais as vantagens do que as desvantagens resultantes da vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos da América. O resto será produto habitual de circunstâncias em que, para lá da retórica, uns e outros habitualmente não se distinguem.