Numa indiferença quase geral, que contrasta com o que se tem verificado noutros países a propósito de questões idênticas (em França ou na Itália, por exemplo), o nosso Parlamento discute alterações à legislação sobre procriação medicamente assistida de importante relevo ético.

Uma delas, que com toda a probabilidade será aprovada em votação final, traduz-se no alargamento do acesso a essas técnicas por parte de mulheres sem parceiro masculino. Assim se elimina regra de que esse é um meio de procriação subsidiário, destinado a suprir uma infertilidade patológica, passando a poder ser encarado como um meio alternativo de procriação, ou seja, um instrumento de realização de qualquer projeto parental possibilitado pelo desenvolvimento científico. E torna-se lícito privar a criança da figura paterna, de forma deliberada e programada.

Ninguém é mãe sozinha e ninguém é pai sozinho. Não se trata de um desígnio a corrigir ou anular, como se não tivesse sentido. Cada um dos sexos não pode deixar de reconhecer, assim, a importância do outro. Assim se exprime a estrutural relacionalidade da pessoa humana, que se realiza na comunhão. Essa comunhão está na origem da vida a partir da unidade da diversidade mais elementar: a que distingue homens e mulheres. Da riqueza da dualidade sexual nasce a vida. Associar a geração da vida à comunhão e ao amor (a vida é fruto do amor e o do amor nasce a vida), e à riqueza da dualidade sexual, não é um “engano” da natureza, mas um desígnio maravilhoso a aceitar e acolher.

A alteração proposta pretende consagrar uma visão radicalmente diferente: a procriação como instrumento de realização de um projeto individual, e não relacional. O filho tende, assim, muito mais, a ser encarado como espelho do único progenitor, e já não como dom a acolher na sua alteridade e unicidade. Passa a ser visto como objeto de um direito que se reivindica. É o “direito à parentalidade” que está em jogo – afirma-se em defesa do projeto em discussão.

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A procriação medicamente assistida tem sido encarada, à luz da lei vigente (que não deixa de ser também merecedora de críticas) como forma de suprir a infertilidade, não como alternativa à procriação natural. Não é um instrumento ao serviço de “novas formas de família”. A criança gerada através de procriação medicamente assistida tem direito a uma família como as outras, a uma família tanto quanto possível próxima da que tem origem na procriação natural.

Não se trata de impor um modelo de família ou uma forma de encarar a maternidade. Trata-se de dar primazia ao bem do filho. E o bem do filho exige que ele seja fruto de uma relação, e não de um projeto individual. E exige que ele não seja intencionalmente privado de um pai.

Na recente exortação apostólica Amoris Laetittia (172), o Papa Francisco, depois de afirmar o direito de toda a criança receber o amor de uma mão e de um pai, «ambos necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso», afirma: «Não se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como fundamento da família. (…) é juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também receber do outro.»

Outra questão também em discussão, esta ainda com possibilidades de vir a ser rejeitada na votação final, tem a ver com a legalização da “maternidade de substituição”.

Uma prática que movimentos feministas de vários países (que confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow) vêem denunciando vigorosamente como de exploração das mulheres mais vulneráveis, que chegam a comparar à escravatura. O projeto em discussão no Parlamento é apresentado com a marca de uma política “progressista”, quando, noutros países, muitas são as vozes tidas por “progressistas” e “de esquerda” (não todas – é certo) que rejeitam essa legalização.

É verdade que o projeto em questão veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de exploração das mulheres pobres. Afirma, porém, o manifesto feminista italiano Se non ora quando-Libere, que a “maternidade de substituição” nunca é um ato de liberdade ou de amor, é sempre um ato de desespero. A experiência tem revelado a extrema dificuldade em impedir a comercialização encapotada por detrás da suposta não onerosidade dos contratos. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia) e essa sujeição não pode considerar-se expressão autêntica de liberdade. Mesmo que assim não seja em situações excecionais ( e nenhuma lei se destina a situações excecionais, mas às que são regra), a generosidade da mulher não pode ser aproveitada para justificar uma prática que representa sempre uma forma de exploração desumana. Sim, porque os malefícios da “maternidade de substituição” não dependem do seu caráter comercial.

Com a legalização da “maternidade de substituição, quer o filho, quer a mãe, são reduzidos a objeto de um contrato (seja ele oneroso ou não). O abandono da criança é não um evento inevitável que deva ser remediado através da adoção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou.

A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho que lhe é imposto. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A mulher não é uma máquina incubadora. A gravidez não é uma atividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente. Impor contratualmente uma obrigação de abandono do filho que se gerou é, como afirma a filósofa feminista francesa Sylviane Agacinsky, «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e «ferir emoções humanas elementares».

O filho nunca deixa de sentir esse abandono. Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afetivo deste. A criança não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses.

Quando a mãe gestante é familiar da mãe requerente, poderá estar afastado qualquer resquício de exploração comercial. Mas suscitam-se gravíssimas consequências, que já foram designadas como “curto-circuito geracional”: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, sua avó ou sua tia.

Em todas estas questões, há que ter presente, acima de tudo, que um filho não pode ser considerado objeto de um direito ou de um desejo, mas um dom a acolher (um dom que também pode ser acolhido através da adoção, quando orientada para o bem da criança). São luminosas as palavras do Papa Francisco na exortação apostólica Amoris Laetittia (170): «[o filho] não é um complemento ou uma solução para uma aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode ser usado para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se esta nova vida te será útil ou não, se possui características que te agradam ou não, se corresponde ou não aos teus projetos e sonhos. Porque “os filhos são uma dádiva! Cada um é único e irrepetível (…). Um filho é amado porque é filho: não, porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não, porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações. Um filho é um filho”.»

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz