Algarve em Agosto. Dias de muito calor e muita gente em todo o lado. Há multidões nos mercados e nos supermercados, nas praias e nos parques de estacionamento. Até nas oficinas de carros, onde filas de nacionais e estrangeiros esperam uma aberta para suplicarem ao mecânico de serviço que os salve de ficarem apeados a meio das férias. Ou de grandes viagens.

Em Lagos há uma oficina perto de um grande supermercado destes que ficam fora do centro. Recomendada por amigos, a amigos aflitos por terem dado cabo do carro nas estradas de pedras e terra que levam às praias da costa vicentina, a oficina estava a abarrotar de carros, clientes e pedidos urgentes.

– Bom dia. Disseram-me que o senhor nos podia ajudar.

O diálogo com um mecânico desconhecido começa quase sempre assim, num misto de súplica e boas maneiras, a tentar que o prático se compadeça e suspenda tudo o que está a fazer para ouvir a queixa. O homem surge de debaixo de um carro velho, deslizando rente ao chão, usando uma espécie de maca com rolamentos. Levanta-se com agilidade e puxa um daqueles trapos de muitos fios para limpar as mãos, mas cumprimenta o cliente com o pulso, para não lhe sujar as mãos. Estende o braço e o outro aperta-o como se fosse um passou-bem.

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– O carro está a fazer uns barulhos de lata e peças soltas em baixo, sabe?! Ontem fizemos aquelas estradas pedregosas para as praias de falésias e alguma coisa ficou avariada, mas temos quatro filhos e não podemos ficar sem carro. Acha que nos consegue ajudar?

O mesmo tom de súplica cerimoniosa, a tentar fazer tudo para que este homem não o despeça liminarmente dizendo que não tem tempo para mais um carro nesse dia. A oficina parece um campo de batalha, cheia de capots abertos, carros esventrados e homens meios desaparecidos em combate. Um é apenas um tronco nu, outro uma grande barriga debruçada sobre o motor; outro só tornozelos e pés a saírem de debaixo de uma carroçaria; outro ainda tem braços e cabeça, mas não se vê o resto do corpo. Amputados aos nossos olhos por portas e janelas justapostas, formam um quadro estranhamente familiar, todos meio emboscados naquela penumbra de poeira metálica a cheirar a óleo e pneus de borracha, a trabalhar em silêncio, fazendo-nos a todos cúmplices de qualquer coisa antiga.

O homem franziu a testa quando ouviu a história dos quatro filhos. Deve ter achado demais, mas foi delicado e não fez perguntas.

– Temos quatro filhos que ficaram em Lisboa porque viemos só passar o fim de semana e temos que ir ter com eles ainda hoje. O mais novo é um bebé de três meses.

Ah! O mecânico nem olha para o cliente, mas a sua expressão fica mais desanuviada. Como se sentisse que lhe lera os pensamentos. Ou como se a explicação fosse a garantia de que não estava a ser enganado.

– Vou ver o que posso fazer. A senhora sente-se ali.

E aponta uma cadeira de braços muito velha, mas ainda segura, à jovem mulher do cliente, que recusa educadamente por estar na mesma ansiedade do marido, a precisar de estar ao seu lado até terem a certeza de que há uma solução para o seu problema.

Apesar de o mecânico estar ocupado com outros trabalhos, suspende tudo e dedica-se ao carro deste casal de Lisboa que nunca tinha visto nem conhecia de lado nenhum. Em pleno Agosto, com a casa cheia de pessoas e carros, detém-se neste caso. Precisou de uma hora e meia para consertar o que tinham estragado na erosiva estrada de pedras e terra.

Demorou todo este tempo sem fazer pausas nem comentários. Assobiou incessantemente e, no fim, estendeu a chave do carro aos donos e rematou:

– São vinte euros, se faz favor.

Vinte euros. Atordoados pelo calor e pela inquietação de não saberem se conseguiriam ter o carro pronto para fazerem a viagem de volta, nem conseguiram articular palavras para exprimir a profunda gratidão que sentiram. Vinte euros por uma hora e meia de trabalho num dia de calor e confusão. Vinte euros por salvar a vida familiar.

Algarve em Agosto. O mês em que todos querem ganhar tudo e sacar o mais possível a turistas e incautos. O tempo em que todos sabem que tudo é muito mais caro e, por isso mesmo, pagam sem argumentar. Neste mês muitos (demasiados!) sentem-se legitimados para pedirem pequenas fortunas por quase nada. E por muito menos que uma hora e meia de trabalhos para arranjar um carro desarranjado na estrada, muitos outros pediriam infinitamente mais.

Este mecânico podia ter-se aproveitado da situação de aflição e podia até ter cobrado uma taxa de urgência. O casal teria pago tudo isso e muito mais para conseguir voltar à estrada a tempo de chegar a casa ainda nesse dia. Mas este homem foi de uma rectidão a toda a prova. O seu profissionalismo e a sua ética impressionaram todos os presentes.

O jovem casal agradeceu penhoradamente e depois saiu da oficina em silêncio. Sem mais palavras à altura. Mais tarde, as conversas de despedida do grupo de amigos a quem contaram o episódio, derivaram rapidamente dos rectos e íntegros, para os trampolineiros, desonestos e gananciosos que abundam dentro e fora do país deixando marcas tremendas e um rasto porventura indelével por onde quer que passam. E a conclusão geral foi que o recto mecânico podia ser ministro. Ou presidente de um banco.

Do lado dos bons ainda temos felizmente homens como este dono da oficina, bem como muitos outros em muitas outras profissões (médicos e enfermeiros que são como João Semana para doentes e pessoas vulneráveis; professores que são verdadeiros missionários e uma quantidade de gente mais e menos anónima que exerce a sua profissão como um verdadeiro sacerdócio) e temos, ainda e sempre, os bombeiros que trabalham dia e noite arriscando a vida por 2€ à hora. Com sorte estes saem dos grandes incêndios com vida e… cerca de 100€ no bolso, depois de cinquenta horas vividas no inferno.

E já que falo outra vez nos bombeiros dou-me conta de que, curiosamente, nunca vi ruas centrais de Lisboa bloqueadas e polícias nas esquinas a desviarem o trânsito por causa de manifestações de rua de bombeiros ou de mestres de oficina. Mas no dia em que os bombeiros se manifestarem e lutarem pela sua causa eu estarei do lado deles.