Os movimentos anti-globalização do século XXI, à semelhança dos movimentos anti-imperialistas do século XX, seus avós, gostam de dar como exemplo dos malefícios da expansão ocidental as doenças (como a varíola) que os conquistadores portugueses e espanhóis levaram consigo para o Novo Mundo. Mas não gostam de dizer a verdade toda. Não gostam de dizer, por exemplo, que, quando as naus de Colombo voltaram das Índias Ocidentais, também trouxeram com elas uma doença, e que essa doença iria tornar-se um dos piores pesadelos do Ocidente nos séculos seguintes: a sífilis. Tão pouco gostam de recordar que os europeus também receberam de outros povos as doenças que depois levaram para o Novo Mundo. A varíola chegou a Roma no século II, vinda do Médio Oriente, e ao sul da Europa no século VII, com as invasões árabes. A peste bubónica, que atingiu o Mediterrâneo e a Europa ocidental por meados do século XIV, foi trazida pelos ratos dos navios que faziam o comércio do Oriente.

Os efeitos devastadores dessas doenças também não foram um exclusivo das Américas. É verdade que, no Novo Mundo, a varíola foi responsável pela morte de quase dois terços da população inca e, na América do Norte, matou milhões de índios no Massachusetts e na região do lago Ontário. Mas a epidemia que atingiu Roma no século II (e que ficou conhecida por “praga de Antonino”, do nome do imperador) também matou um terço da população da cidade e mais de 7 milhões de pessoas no conjunto do mundo romano, tendo afectado drasticamente a capacidade do império para cobrar impostos, cultivar terras e preencher lugares públicos. E a primeira epidemia de peste que atingiu a Europa ocidental matou qualquer coisa como 75 milhões de pessoas: quase metade da população da época. A desorganização do trabalho e a fome que se seguiram contribuíram largamente para as violentas revoltas camponesas do século XIV, conhecidas em França por “Jacqueries”.

Todas estas epidemias ocorreram estreitamente associadas aos primeiros fenómenos de globalização (ou globalização arcaica, que vai desde a Antiguidade ao fim do século XVI): as guerras de conquista, as peregrinações, as caravanas de comerciantes (que ligavam o norte de África ao Oriente) e o comércio marítimo entre o Oriente e a Europa (e, depois, entre a Europa e o Novo Mundo). Os barcos e os seus marinheiros, sobretudo, desempenharam em tudo isto um papel essencial, pelo número e pela dispersão da sua actividade. A última pandemia de peste, que começou na Manchúria em meados do século XIX, demorou 40 anos a atingir Hong-Kong (em 1894), mas depois chegou à Europa em apenas cinco anos (1899, no Porto) – apesar de todas as quarentenas decretadas pelas autoridades sanitárias.

Há demasiadas vítimas nas histórias da História que agora se contam e a Europa é, há muito tempo, um alvo favorito dos discursos de vitimização. Mas todos somos ou fomos vítimas e culpados à vez, conforme as oportunidades e os azares que nos couberam. Há tempo demais que andamos por aí a rasgar as vestes.

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