Em 1900, entre um quarto e um terço de todos os doentes internados nos asilos de loucos sofria de paralisia geral, que a medicina atribuía à má hereditariedade, ao álcool e à masturbação. Foi August Paul von Wassermann (1866-1925), um judeu bávaro que trabalhava no Instituto de Doenças Infecciosas de Robert Koch, em Berlim, e tinha desenvolvido o primeiro teste serológico para a sífilis, quem demonstrou em 1906 que esse mesmo teste era positivo no líquido céfalo-raquidiano dos doentes com paralisia geral. O flagelo divino que apagara o espírito de Nietzsche, Van Gogh e Byron era, afinal, uma doença como as outras: o resultado de um micróbio, como a peste e a cólera.

O achado de Wassermann veio dar força aos psiquiatras que, como Emil Kraepelin (1856-1926), acreditavam numa base orgânica para as doenças mentais (por oposição aos defensores da tese psicogénica). Kraepelin, em particular, acreditava que as doenças mentais tinham uma origem biológica e genética e defendia que a psiquiatria devia adoptar, à semelhança das outras especialidades médicas, os métodos de investigação usados pelas ciências naturais. Em 1897 designou uma entidade clínica, a que chamou demência precoce, que reunia três afecções até então classificadas separadamente: o estupor catatónico, a hebefrenia e a “vesania typica” (ou ilusões delirantes). Kraepelin considerava que todas evoluíam para um mesmo estado terminal de demência. Embora sem dispor de uma só evidência a favor de uma base orgânica para a demência, acreditava que ela existia e que era uma questão de tempo até que fosse identificada.

A paralisia geral dominava os asilos psiquiátricos na passagem do século. O modelo da mente sifilítica dominou a psiquiatria. Em 1908, Paul Eugen Bleuler (1857-1939), que era director do hospital psiquiátrico da universidade de Zurique e tinha como assistente um jovem chamado Carl Gustav Jung, redefiniu o quadro clínico descrito por Kraepelin e deu à doença uma nova dignidade, atribuindo-lhe um nome de raiz grega: esquizofrenia. Mas não contestou a hipótese orgânica. À semelhança de Kraepelin, postulou que esta seria, a seu tempo, comprovada e continuou a caracterizar a doença com base, não em evidências fisiopatológicas, objectivas e demonstráveis, mas em comportamentos e no juízo subjectivo que o psiquiatra faz sobre eles: o doente é doente porque o psiquiatra diz que ele é doente. Foi com base nessa autoridade que, durante décadas, dezenas de milhares de pessoas foram sujeitas a tratamentos cheios de imaginação: a cura pela febre (o doente era deliberadamente infectado com malária), a indução do coma (por choque insulínico), os electrochoques, a lobotomia.

Ao mesmo tempo, ninguém concordava em relação ao mais essencial: o que era a doença mental e como a tratar. Mas, para Kraepelin, Bleuler e os seus seguidores, isso não era um problema: a identificação da “lesão” subjacente à doença era “uma questão de tempo”. Passaram cem anos e continua-se à procura. João Marques Teixeira, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Doença Mental: “ainda não conseguimos encontrar marcadores biológicos ou funcionais visíveis”. Note-se o pormenor: “visíveis”. Subentende-se: eles estão lá, os marcadores, nós é que não os vemos. Como não víamos o micróbio, o Treponema da paralisia geral. Acontece que a paralisia geral já possuía uma base patológica visível antes da sua identificação com a sífilis. Bayle, em 1825, descreveu as lesões anatómicas que observava no encéfalo e nas meninges dos doentes. Nunca houve nada disso na demência de Kraepelin ou na esquizofrenia de Bleuler. Ambos se limitaram a inventariar e classificar comportamentos reprováveis: ilusões, incoerências, alterações da vontade. A esquizofrenia é uma questão de fé.

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