Maiores do que a poupa de James Brown, só mesmo o talento e o ego. Os três estão devidamente documentados em Get on Up, o filme biográfico do Padrinho da Soul (estreia-se hoje) realizado por Tate Taylor (autor do politicamente correctíssimo As Serviçais), produzido por Mick Jagger e que era originalmente um documentário. Ao invés de ser uma biografia linear e reverente, um retrato de vida de juntar por números, amigo do psicologismo pronto-a-usar e dos clichés piedosos e moralizantes do género, Get on Up opta, por um lado, por uma cronologia salta-pocinhas, circulando constantemente entre presente e passado, entre a infância de pobreza descalça e gulosa de gospel no Sul dos EUA, a juventude ambiciosa e os tempos de glória e tragédia da idade adulta, enquanto regista as várias fases da carreira do biografado e acaba formando um círculo perfeito; e pelo outro, procura mostrar todas as facetas de James Brown, das mais dignas de aplauso e de reconhecimento às mais desagradáveis.

Temos assim o cantor inspirado, operário e determinado que, entre os anos 50 e 60, transformou o rhythm & blues na soul e depois inventou o funk, enquanto punha nas suas interpretações mais electricidade, mais frenesim, mais ginástica, mais sexualidade, mais suor e mais extravagância do que qualquer outro, tornando-se num dos artistas com mais discos vendidos e o mais bem pago nos anos 60 e 70. Mas temos também o fino homem de negócios que percebeu que ganharia muito mais dinheiro se dispensasse os promotores de concertos e, com o seu agente, fizesse a sua própria promoção e divulgação, e se controlasse os seus ganhos e os dos seus músicos e empregados; o patrão mesquinho e reizinho absoluto que exigia ser tratado por “Sr. Brown”, multava membros da banda e funcionários e despedia músicos por  consumir drogas ou beber, enquanto fumava tabaco salpicado com com cocaína; o agressor de mulheres; o empresário e gestor que fugia aos impostos, e a figura pública que apoiou a integração racial, a campanha pelos direitos civis de Luther King e frequentou os Panteras Negras, e foi cantar ao Vietname sob o presidente Lyndon Johnson (o que nos dá direito a uma sequência hilariante quando o avião da banda é alvejado pelos Vietcong) e apoiou Richard Nixon e Ronald Reagan.

Mick Jagger, o produtor, fala sobre James Brown

Parecem muitas coisas, e bastante complicadas, para conseguir forrar um filme de duas horas e pouco, mas Taylor e os argumentistas Jez e John Henry Butterworth fazem o seu melhor, nem que seja de forma sintética. Tino comercial: o jovem Brown, notas de dólar a rolar na mão, explica aos membros dos The Flames, a sua banda – rapidamente rebaptizada James Brown & the Famous Flames – que o ramo em que estão é “show”, mas também “business”. Génio musical: num ensaio com a banda, Brown insiste com os músicos que estão todos a tocar bateria, e não apenas o baterista, fazendo-lhes entender que o que quer na interpretação é ritmo e não melodia. Narcisismo elefantino: agastado por Martin Luther King ter sido assassinado no dia em que ia dar um concerto em Boston, que foi cancelado por razões de segurança, Brown fala com o presidente da câmara local, consegue autorização para actuar e ainda faz figura de exemplo para a comunidade negra.

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James Brown ao vivo em ‘The TAMI Show’ 

Mesmo assim,a fita omite factos como os dois anos de cadeia, de uma pena de seis, que o cantor cumpriu por causa do episódio com a polícia com que abre Get on Up, ou as várias detenções por violência doméstica e acusações de violação. Taylor prefere igualmente não mostrar  que nos últimos anos de vida, o cantor era uma sombra de si mesmo: mal se conseguia mexer em palco, esquecia-se das letras das canções e já não acompanhava o ritmo dos músicos.

E há a música, claro, que concretiza, afirma e celebra o profissionalismo suado e o talento exuberante de James Brown, e que Tate Taylor evita que se torne invasora e submeta o filme ao seu poder, tal como não permite que os aspectos mais caricaturais e excêntricos da figura do cantor dominem a personagem e ela vire um boneco musical ridículo.

James Brown interpreta o clássico ‘Sex Machine: Get on Up’  

Get on Up também não se esquece de alguns dos mais importantes membros da banda de Brown, antes da grande dissidência de 1969 por razões de pagadoria e de paciência esgotada, caso do saxofonista Maceo Parker, do baterista Clyde Stubblefield, do guitarrista Jimmy Nolen ou do cantor e seu velho, fidelíssimo e sofredor amigo Bobby Bird, muito melhor ser humano mas menos talentoso do que o líder. O bondoso Bird é interpretado por Nalsan Ellis qual paciente Job do poderoso e caprichoso deus Brown, que ao longo do filme vai falando directamente para a câmara, para se confidenciar ao espectador com tanta franqueza como arrogância – e algum sentido de humor cínico.

James Brown ao vivo no Apollo 

Chadwick Boseman, actor relativamente desconhecido que fez o campeão de basebol Jackie Robinson em 42 (nunca exibido em Portugal) e vai ser o super-herói negro Black Panther em dois dos próximos filmes da Marvel, interpreta James Brown em Get on Up. E deve ter dado o litro quase tanto como o biografado (que também se auto-denominava “O Trabalhador mais Incansável do Mundo do Espectáculo”), para conseguir chegar tão perto da forma como James Brown se movimentava e falava, agia, cantava e dançava, e sacaneava, sem procurar a imitação minhoquinhas nem se se despenhar na paródia ou na caricatura.

James Brown no filme ‘O Dueto da Corda’, de John Landis

Tudo consumado, pesado e passado à peneira das virtudes e dos pecados, Get on Up mostra que, tal como cantava Frank Sinatra, James Brown fez tudo à sua maneira, “his way”. E sempre com muito funk.