Penso que foi o pintor inglês Wyndham Lewis quem disse: “Os maiores admiradores e defensores dos grandes artistas têm também que ser os seus mais severos críticos”. Por isso, hoje tenho que ser um severo crítico de “Vício Intrínseco”, o novo filme de um dos meus cineastas favoritos, Paul Thomas Anderson, que sigo, admiro, elogio e defendo desde a sua primeira longa-metragem, nunca exibida em Portugal em sala e então editada apenas em vídeo, “Passado Sangrento” (1996). “Vício Intrínseco” é apenas o segundo filme de Anderson cujo argumento ele não assinou e em que adapta um livro (o primeiro foi “Haverá Sangue”, em 2007, sobre uma obra de Upton Sinclair).

Esse livro, infelizmente, é “Inherent Vice” (2009), de Thomas Pynchon, o escritor americano mais pós-pós-moderno, pós-irónico, pós-“o romance está morto”, mais complexamente denso, labiríntico e multi-referencial, de leitura exigente até ao exasperante, e tão fácil de transpor para o cinema como escalar o Evereste usando apenas as mãos e os dentes. Como escreveu o meu colega Anthony Lane na “New Yorker”, o simples facto de Anderson ter tentado adaptar pela primeira vez uma obra de Thomas Pynchon à tela “merece um prémio por valor”, porque é o equivalente a “tentar meter a Filarmónica de Nova Iorque num Ford Focus” (ou o Rossio na Rua da Betesga, diríamos por aqui). Lane diz também que a julgar pelos resultados, esta deverá ser também “a primeira e última vez que alguém filma um livro de Pynchon”.

“Trailer” de “Vício Intrínseco”

Contado por uma narradora mesmo nada fiável, flutuando algures entre um Raymond Chandler em “trip” de cogumelos alucinogéneos e a versão revisionista e desprendida de “O Imenso Adeus” que Robert Altman realizou em 1973, com um (anti)-herói (o detective particular e “pedrado” profissional  “Doc” Sportello, interpretado por Joaquin Phoenix) aparentado com o Grande Lebowski de Jeff Bridges na fita homónima dos irmãos Coen, “Vício Intrínseco” é um “thriller” semi-cómico, janado e paranóico, errático e arbitrário, remendão e opaco, e que parece aquelas caixas de onde os ilusionistas vão tirando sucessivamente caixas mais pequeninas, até no final não haver nada em cima da mesa.

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Entrevista com Paul Thomas Anderson

O enredo – ou o que passa por isso -, ambientado em Los Angeles, no início dos anos 70, no refluxo sangrento da utopia “hippie”-paz-amor-e-drogas, vai-se desdobrando em vários subenredos menores, até que no fim ficamos sem nada: história, sentido, motivações, explicação. Até lá chegarmos, cruzamos, na companhia de Sportello, toda uma série de personagens secundárias, comparsas, excêntricos e bizarros em geral, entre polícias brutais e corruptos (Josh Brolin à frente da matilha), malfeitores coloridos, dentistas cocainómanos e aluados (uma aparição-relâmpago de Martin Short), radicais desiludidos, garotas promíscuas, traficantes de droga misteriosos, políticos oleosos e malta “alternativa” em geral. Sem que consigamos perceber quem está relacionado com quem, quem fez o quê e a quem, e porquê. (Como estamos no ecossistema de Thomas Pynchon, talvez a resposta seja: “O que é que isso importa?” Bem, importa-me a mim, pelo menos…)

Entrevista com Joaquin Phoenix

A nossa perplexidade só tem igual na do próprio Sportello, que longe, muito longe de ser um detective “tough guy” como mandam as regras, é um pião das nicas que se movimenta com combustível de substâncias ilegais e ao sabor dos acontecimentos, a fazer ricochete de pista em pista, como uma bola de uma máquina de “pinball” manejada por um poder superior e indiferente. Mas há um demiurgo omnisciente e omnipotente nesta fita, ele fumou erva a mais e não tem a menor noção do que está a fazer.

Dirão os exegetas de Thomas Pynchon e os irredutíveis de Paul Thomas Anderson que há ali algures um lamento misto de melancólico e pachola pela morte do sonho radical-contracultural tal como se manifestou na Califórnia na década de 60, e de condenação entre o satírico e o caricatural da reaccionária era Nixon que se agiganta no horizonte. Mas a haver, está indistinta, esbatida, balbuciada, desgarrada, no meio da espessa nuvem de auto-indulgência “charrada” que envolve “Vício Intrínseco”. Parafraseando o outro: Anderson, onde tá o filme, meu? Em nome de “Boogie Nights”, de “Magnólia”, de “O Mentor”, esqueça-se este embaraçoso estampanço e venha o próximo filme.