Um dia depois da apresentação das propostas económicas do PS, há três cuja constitucionalidade está a suscitar dúvidas e promete adensar o debate: a introdução de um regime conciliatório de despedimento na função pública, o congelamento e convergência das pensões, e a reposição faseada dos cortes salariais até 2017. Esta última já levou os partidos da maioria a acusarem os socialistas de “incoerência”, por terem vindo a criticar o gradualismo proposto pelo do Governo. Para o PS, no entanto, há diferenças e o modelo sugerido pelos economistas está “perfeitamente enquadrado” no acórdão do TC.
Depois de vários meses sem que o PS esclarecesse se se iria bater pela devolução integral dos cortes salariais já em 2016 ou se iria apostar numa via de reposição gradual, à semelhança do que agora propõe o Governo, ontem ficou pela primeira vez claro, no documento apresentado no Largo do Rato, qual é a ideia dos socialistas: “eliminar a redução salarial dos funcionários públicos, em vigor desde o Orçamento do Estado de 2011, em dois anos através da supressão dos cortes em 40% em 2016 e a parte remanescente em 2017“, lê-se no documento. Até aqui, o máximo que o líder socialista tinha dito era que queria devolver “o máximo possível” dos cortes salariais em 2016.
Com a proposta em cima da mesa, o PS aposta agora numa reposição mais rápida do que a que o Governo propõe (o Programa de Estabilidade do Governo fala numa reposição de 20% ao ano até 2019), mas ainda assim faseada, o que suscita dúvidas sobre se ambas as propostas encaixam nas orientações deixadas pelo Tribunal Constitucional no acórdão de agosto. Nessa altura os juízes chumbaram os cortes que fossem para lá do período excecional, que acabaria em 2015, por dizerem que “careciam de fundamento”.
Ao Observador Vitalino Canas, deputado do PS e especialista em direito constitucional, não tem dúvidas de que o modelo de reposição gradual do PS “corresponde sem dúvida nenhuma à orientação do acórdão 574/2014 do TC”. Para o deputado socialista, apesar de a leitura do acórdão ter vindo a suscitar diferentes interpretações quanto ao que fazer aos cortes depois de 2015, “o TC é claro e nunca disse que no ano que vem têm de ser devolvidos os cortes na íntegra”. “O que disse foi que os fundamentos que considerava válidos para as reduções até 2015 deixavam de ser válidos depois desse ano, e que não era aceitável não definir o ritmo da recuperação sob pena de se devolver os primeiros 20% do corte em 2016 e empurrar o resto da reposição toda para o fim da legislatura”, acrescentou.
Ou seja, se ficar definido um ritmo da reposição dos cortes então aí “não há dúvidas sobre a constitucionalidade”. Quando questionado pelo Observador sobre o modelo do Governo de reposição gradual dos cortes, a 20% ao ano, contudo, o socialista afirmou que esse modelo arrasta os cortes por mais tempo e “atira o grosso da reposição para o fim da legislatura”. Logo, é mais “nebuloso”.
Mas não é esse o argumento dos partidos mais à esquerda, que veem a reposição gradual dos cortes salariais (quer a reposição mais lenta do Governo quer a reposição mais rápida do PS) como uma manutenção dos cortes, que foram vendidos como temporários e que agora adquirem assim um caráter mais duradouro. A leitura do Bloco de Esquerda e do PCP é, por isso, de que qualquer reposição que não seja na íntegra é inconstitucional, pelo que podem vir a fazer pedido de verificação da constitucionalidade ao TC. Esta fiscalização requer a assinatura de um quinto dos deputados em efetividade de funções, ou seja, 46, número que, de qualquer forma, não se sabe se os partidos de esquerda ou outros novos partidos possam vir a somar na próxima legislatura
Pensões e despedimentos
Outra das propostas dos socialistas que promete vir a agitar as águas da Constituição é a “introdução de um regime conciliatório de cessação do contrato de trabalho, aplicável aos novos contratos”. Nesse capítulo do documento “Uma Agenda para Portugal”, aliás, os economistas coordenados por Mário Centeno referem pela única vez a palavra “inconstitucionalidade”, antevendo dúvidas.
Em causa está a proposta de complementar a atual legislação de despedimentos com um regime em que as empresas “podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento coletivo, englobando todos os motivos de razão económica (de mercado, estruturais e tecnológicas) que tenham posto em causa a sobrevivência do emprego”. No documento, o PS nota à partida que “a generalização dos contratos com termo equivaleu à legalização do despedimento sem invocação de causa, uma prática explicitamente inconstitucional”. E a introdução de um novo argumento para o despedimento – com motivos de razão económica – promete também suscitar polémica.
Em relação às pensões, o caminho também não se avizinha fácil. É que o plano económico do PS defende o pressuposto de que as pensões, à exceção das mínimas, vão estar congeladas até ao fim da legislatura, e propõe uma espécie de convergência das regras de atribuição de pensões na Caixa Geral de Aposentações com as do regime geral da Segurança Social. Na memória ainda está fresco o chumbo de 2013 à convergência dos sistemas de pensões, tema que é sempre caro aos partidos da esquerda parlamentar e aos sindicatos.
No passado, medidas deste género fizeram erguer várias vezes a bandeira da inconstitucionalidade. Foi o caso da altura em que o Governo propôs o despedimento por extinção do posto de trabalho, onde rapidamente a oposição e as centrais sindicais levantaram a voz para dizer que a proposta assentava em critérios discricionários e subjetivos e, como tal, não chocava com a Constituição. O mesmo aconteceu com a polémica proposta do regime de convergência de pensões da Caixa Geral de Aposentações e da Segurança Social, que, no final de 2013, teve um chumbo redondo dos juízes do Palácio Ratton.