Se António Costa for indigitado primeiro-ministro, e tudo parece apontar nesse sentido, o secretário-geral socialista e Cavaco Silva deverão coabitar nos respetivos cargos durante três meses, sensivelmente até março. Pela frente, Costa terá alguns dossiers sensíveis para tratar sob o olhar atento de Belém.

Logo à cabeça, o Orçamento do Estado para 2016. O Presidente da República pediu ao socialista que garantisse a aprovação das contas ao longo da legislatura, especialmente em 2016 e avisou que teriam de ser cumpridos os compromissos do país na Europa. 

Além disso, existem outros temas, sobretudo pontas soltas deixadas pelo Governo de Pedro Passos Coelho. Desde logo, que rumo dar ao Novo Banco e ao Banif e o que fazer em relação à TAP – o PS ainda não desistiu da ideia de reverter o processo. Mas há mais passando pelas Forças Armadas e o terrorismo.

Orçamento do Estado para 2016. Costa promete ser rápido, mas Cavaco quer mais garantias

Será o primeiro grande desafio de António Costa. Com Bruxelas a pressionar e a ameaçar castigar Portugal caso o país continue sem enviar o plano de Orçamento de Estado para 2016, o futuro Governo socialista tem de o fechar o mais rápido possível. Primeiro, terá de o negociar com Bloco de Esquerda, PCP e Verdes – Jerónimo de Sousa já deixou bem claro que não passa cheques em branco e que vai analisar medida a medida.

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Depois de fechado esse ciclo, o Orçamento tem de seguir para Belém, onde o Presidente da República tem de o promulgar. E um dos compromissos pedidos por Cavaco Silva foi a garantia do “cumprimento das regras de disciplina orçamental aplicadas a todos os países da Zona Euro”, nomeadamente o limite de 3% do défice. O programa de Governo do PS, com números atualizados, já para incluir as medidas que resultaram do acordo, apontam para um défice de 3% já em 2016. No entanto, tanto o Bloco de Esquerda como PCP sempre manifestaram a sua oposição às regras orçamentais europeias e Jerónimo, numa altura em que estava já em negociações com o PS, chegou a questionar essa meta. Pode vir a ser uma zona de coabitação complexa para António Costa, entre São Bento e Belém.

Ao DN, Mário Centeno garantiu que o PS está pronto para fechar o Orçamento “no mais curto tempo possível”, não esgotando os três meses de que dispõe ao abrigo da lei. E esse pode ser um trunfo para António Costa. 

Para já, o líder socialista garantiu que irá manter (parte) dos cortes nos salários dos funcionários públicos e da sobretaxa de IRS. As medidas devem ser discutidas até ao final do mês ou, no limite, no início do próximo. Até porque, com a entrada do ano com um orçamento em duodécimos, o PS já tinha dito que queria aprovar medidas temporárias fora da discussão do Orçamento do Estado, para que não derrapasse a despesa pública com a devolução integral dos cortes logo no início do ano. Bloco e PCP concordam com este modelo e com a aprovação até ao final do ano. Cavaco Silva sempre levantou grandes preocupações com a saúde das contas públicas e pode querer acompanhar este processo com alguma atenção.. 

Novo Banco. “O” dossier pendente 

O Novo Banco não foi vendido no prazo previsto e, assim, o próprio Banco de Portugal recomendou que se peça à Direção-geral da Concorrência um alargamento do prazo (que, neste momento, termina em agosto de 2016) para a venda da instituição. Isto significa que não se esperam grandes desenvolvimentos neste processo nos meses de convivência entre Costa e Cavaco.

Ainda assim, o Novo Banco está, neste momento, a preparar um plano de reestruturação que terá de ser proposto à mesma autoridade europeia da concorrência. Ao mesmo tempo, a instituição ficou a saber que tem nove meses para reforçar os capitais próprios depois de ter chumbado no cenário adverso do teste de stress – com uma insuficiência de cerca de 1.400 milhões de euros.

É provável, contudo, que o Novo Banco seja notícia nos próximos meses, também, pelas ações de protesto dos chamados “lesados do BES”, que no início de novembro arrancaram com uma “segunda vaga” de protestos a exigir a devolução dos montantes aplicados, aos balcões do BES, em papel comercial de empresas do Grupo Espírito Santo que estão falidas.

Banif. Apoio do Estado pode ter veto dos partidos à esquerda

A liderança do Banif está, desde o final de outubro, em contacto com António Costa e outros dirigentes do PS para esclarecer a situação do banco. Isto depois de o banco se ter visto envolvido no debate político após as eleições. Sabe-se que o Banif necessita de reforçar os capitais em cerca de 150 milhões de euros e que o Estado tem cerca de 60% do capital da instituição. E sabe-se, também, que o banco tarda em encontrar um investidor privado que se substitua ao Estado.

Essa solução torna-se mais difícil porque continua por aprovar o plano de reestruturação pela Direção-geral da Concorrência europeia. Uma das propostas que o Banif tem em mente para acelerar o seu processo de reestruturação é, escreveu o Público, a criação de um veículo para onde pudessem ser transferidos ativos imobiliários do banco, um veículo que seria da responsabilidade conjunta dos outros bancos, do Tesouro público e das sociedades imobiliárias.

Um processo desse género aceleraria a venda do banco mas teria implicações políticas, porque poderia ser visto – incluindo pelos partidos que apoiam o PS no governo – como uma ajuda estatal à banca.

Passos fechou a privatização da TAP, mas esquerda não atira toalha ao chão

Com a privatização da TAP a servir de arma de arremesso nas últimas semanas, as divergências entre os dois blocos têm-se acentuado. À direita, PSD e CDS invocaram a urgência imperiosa e o interesse nacional para fechar o negócio; à esquerda, PS, Bloco e PCP não desistem de reverter o processo.

O fecho da operação e a capitalização de 270 milhões de euros – para já, entraram 150 milhões de euros para fazer face a necessidades imediatas de tesouraria, significa que o próximo Governo estará perante um facto consumado, do ponto de vista jurídico e financeiro. E se um contrato final assinado não impede o próximo Governo socialista de reverter a privatização, dá mais força a um eventual pedido de compensação por parte dos privados. A possível reversão da venda da TAP pode ter implicações para os cofres do Estado português e fazer soar os alarmes de Belém.

Cavaco já fez saber que considera que o Governo de gestão de Passos tem plenos poderes para fechar uma venda, que defende há bastante tempo.

Agenda Fraturante: Adoção, aborto, maternidade. O que dirá Cavaco?

Foram a prioridade da esquerda no arranque da legislatura, mas toda a legislação tem de passar pelo crivo do Presidente da República. No Parlamento, PS, BE, Verdes, PCP e até PAN avançaram já com um conjunto de propostas legislativas em torno das questões ditas “fraturantes”: adoção homossexual, lei do aborto, maternidade de substituição. Com uma maioria de esquerda no Parlamento, é certo que os projetos de lei vão ser aprovados, mas é Cavaco quem tem de os promulgar para terem força de lei.

A legalização da adoção de crianças por casais do mesmo sexo, assim como a revogação das últimas alterações à lei do aborto já foram aprovadas no Parlamento na semana passada, sendo que os diplomas vão agora ser discutidos em sede de especialidade para depois serem votados em modo definitivo pelos deputados e enviados para as mãos do Presidente. O mesmo para a suspensão dos exames do primeiro ciclo, que deverá ser aprovado esta semana.

No final, cabe ao Presidente da República decidir se promulga os decretos de lei ou se os veta. Em 2010, quando era José Sócrates quem estava na liderança do Executivo, Cavaco enviou o diploma sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo para o Tribunal Constitucional e surgiram várias notícias a dizer que a sua intenção era vetar a lei. Cavaco acabaria por promulgar, dizendo que vetar o diploma seria “arrastar inutilmente” o debate sobre o tema, desviando os políticos da resolução dos problemas graves dos portugueses. Ao longo dos seus dois mandatos, Cavaco vetou questões como as alterações ao regime jurídico do divórcio, as alterações à lei da união de facto ou a revogação das taxas moderadoras.

Tribunal de Contas ainda à espera de novo Governo 

A nomeação do próximo presidente do Tribunal de Contas e substituto de Guilherme D’ Oliveira Martins vai ter de ficar em suspenso e esperar pela tomada de posse do novo Governo. Apesar de ser uma competência do Presidente da República, cabe ao Executivo propor um nome para o cargo.

De acordo com a Constituição da República, compete ao chefe de Estado “nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas”. Mas Guilherme D’ Oliveira Martins deixou o cargo a 1 de novembro, no meio do furacão político. Neste caso, coube ao vice-presidente do Tribunal de Contas, Carlos Lourenço Morais Antunes assumir a presidência interina.

Se for indigitado primeiro-ministro, António Costa terá então de decidir se propõe um nome a Cavaco Silva ou se espera pelo próximo Presidente da República para negociar o nome do próximo presidente do Tribunal de Contas.

Luta contra o terrorismo. A palavra ao PR

Política externa é outra área em que Governo e Presidente têm que trabalhar em articulação. A forma como Portugal poderá aprofundar o seu envolvimento na Coligação Internacional de Combate ao Estado Islâmico obrigará, não a consultas, mas mesmo a acordo entre Presidente e Governo. Já aconteceu no passado haver um Presidente que se opôs ao envio de militares para o Iraque, Jorge Sampaio, tendo o Governo optado por enviar um contingente da GNR, que depende unicamente do Governo.

Portugal já está presente no Iraque com cerca de 30 efetivos na missão internacional liderada pelos Estados Unidos da América, com nome de código Operation Inherent Resolve. Mas os militares portugueses não estão envolvidos em quaisquer ações de combate no terreno – dão treino ao Exército iraquiano.

Esta terça-feira, reúne-se o Conselho Superior de Defesa Nacional, que deverá acompanhar esta questão. Cavaco Silva tem dito, a propósito do terrorismo, que “a Europa, depois do que aconteceu em Paris, e do que já tinha acontecido também em Paris, na Holanda, na Tunísia, no Líbano, não pode continuar de braços caídos. É preciso encontrar uma resposta tão rápida quanto possível”.

Cavaco avisa: concertação social não pode perder preponderância

É uma das condições colocadas por Cavaco a António Costa: esclarecer qual o “papel do Conselho Permanente de Concertação Social, dada a relevância do seu contributo para a coesão social e o desenvolvimento do país”. Os patrões, assim como a UGT, mostraram-se preocupados quando foram ouvidos pelo Presidente e agora Cavaco traduziu as preocupações para o papel. As críticas são de que Costa quer substituir a Concertação Social pelo Parlamento e decidir tudo ali, onde goza de maioria.

Este equilíbrio de forças é, por isso, uma questão a resolver entre o provável futuro primeiro-ministro e o Presidente da República. Em causa estão questões como o aumento do salário mínimo nacional, que consta do acordo com as esquerdas, onde se lê a intenção de aumentar para 600 euros até 2019 (com intervalos negociais a ser concertados com os parceiros), mas também questões como o modelo de avaliação dos professores, que o PS já disse ter de ser “reavaliado” em sede de concertação social.

As preocupações dos patrões e sindicatos ficaram evidentes nas audições com Cavaco Silva, na semana passada. António Saraiva, presidente do Confederação de Empresários de Portugal, foi muito crítico sobre a proposta da esquerda de aumentar o salário mínimo dizendo, em declarações ao Observador após reunião com Cavaco, que “existe um acordo na concertação social que termina no final do ano e que há uma comissão que, avaliando o plano de produtividade, a inflação e o crescimento do país, avança com uma proposta do aumento do salário mínimo”. “Não pode ser o partido A ou B que determina seja o que for”, disse.

Também da UGT choveram avisos. À saída do encontro com o Presidente da República, Carlos Silva manifestou-se “frontal e radicalmente contra” um eventual esvaziamento da concertação social. “Quando se ouve na comunicação social que eventualmente a concertação social em Portugal poderá chegar um momento em que não faz sentido que algumas matérias sejam lá discutidas e faz mais sentido dar essa voz aos partidos políticos, nós somos radical e frontalmente contra”.

Costa terá de propor nome para o Estado-Maior da Força Aérea. Cavaco já ‘vetou’ Passos

O Presidente é o chefe supremo das Forças Armadas e, como tal, se há matéria em que há uma estreita relação entre Governo e Presidência é a Defesa. Há um dossiê que deveria estar fechado até fevereiro de 2016 – o novo chefe do Estado-Maior da Força Aérea. O general Araújo Pinheiro exerce o cargo desde 2011. Cumpriu o mandato normal de três anos e foi reconduzido por mais dois, expirando o prazo de validade exatamente em fevereiro do próximo ano. Resta saber se António Costa quererá discutir este assunto com Cavaco ou quererá esperar mais uns meses pelo próximo Presidente.

Nas questões de nomeações de chefes de Estado-Maior, a opinião dos Presidentes têm sempre mais peso do que a dos primeiros-ministros. Recorde-se o caso da Marinha em que o almirante Macieira Fragoso não era o número das preferências de Passos e foi ainda assim o escolhido.

Indultos de Natal. Tradição com PS

Compete ao Presidente indultar e comutar penas, ouvido o Governo. Como é tradição, a reunião entre Presidente e ministro da Justiça acontecerá alguns dias antes do Natal (no ano passado foi a 22 de dezembro). Desta vez, Cavaco já reunirá com um ministro da Justiça socialista. Embora a lista de pedidos seja sempre grande, o Presidente tem sido parcimonioso. Tem dado sempre dois ou três por ano. Nunca mais.