O descontentamento dentro do Exército é cada vez mais evidente. Em sucessivas notas enviadas ao Comandante das Forças Terrestres (CTF) nos últimos três meses, os paraquedistas que partem para a República Centro Africana, já em setembro, têm alertado para o risco que os militares portugueses correm ao serem obrigados a combater com uma arma que não dominam (e que em alguns casos nunca tinham disparado). Tudo porque o Exército se recusa a substituir as G3, usadas pela força de comandos, pela Galil, a arma de eleição dos paraquedistas.

A 4ª Força Nacional Destacada, incluindo o grupo de 90 paraquedistas do Exército, fez um levantamento ao pormenor, para sensibilizar o comando para a importância de combater com aquela que foi a sua arma nos últimos 30 anos, e apresenta vários argumentos, incluindo a facilidade de transporte: basta uma palete para carregar 120 Galil, carregadores e respetivas munições para aquele país africano, onde Portugal integra a missão das Nações Unidas. São pouco mais de 5 mil quilos que cabem em 4,47 metros cúbicos do porão de um avião.

Diamantes, sangue e militares portugueses sob fogo

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porque é que o tema é relevante? Os próprios documentos enviados ao Comandante das Forças Terrestres, o tenente-general Guerra Pereira, e a que o Observador teve acesso, dão a resposta. Há, desde logo, duas palavras-chave: segurança e eficácia no combate dos militares portugueses.

Militares nunca disparam com G3

A primeira nota foi enviada ao CFT no início do “aprontamento” da força, um momento em que se prepara a missão e se afinam táticas operacionais, aprofundam metodologias de ação no terreno, se conhece o território e o contexto cultural. Nesse documento, há uma nota para a (falta de) rotina dos operacionais com a G3: é referido que, se os oficiais e sargentos do 2º Batalhão de Infantaria Paraquedista até tiveram formação com a arma da Guerra Colonial, por regra, as praças que concorrem a esta unidade especial do Exército — e que são o grosso da força que vai combater na RCA — nunca dispararam um tiro com a G3.

Este é um dos pontos sublinhados nos relatórios: muitos militares começaram a treinar do zero com a G3 quando se alistaram para a missão, que decorre num dos mais sensíveis (se não o mais sensível) teatros de operações com presença portuguesa neste momento.

A falta de rotinas com esta arma dificulta a própria preparação da missão, uma vez que o tempo que podia ser usado para aprofundar outras áreas do treino tem de ser direcionado para promover o contacto com a “nova” arma. Aliás, para treinarem com a G3, os militares são ainda obrigados a deixar S. Jacinto, em Aveiro, onde está a base da força de paraquedistas, e a descer, por exemplo, até ao Campo de Tiro de Alcochete, onde dispõem de condições para este tipo de treino que não existem a norte. É por esta razão, explica o relatório entregue ao tenente-general Guerra Pereira, e que o Observador consultou, que a eficácia no combate está comprometida.

Militares portugueses atacados na República Centro Africana

Por fim, ainda há a questão da segurança, que se percebe melhor com um exemplo prático. Cada carregador da G3 tem capacidade para 20 munições, enquanto um carregador da Galil transporta 35 munições (mais 75% que a arma dos comandos); se um militar transporta consigo cinco a seis carregadores quando sai em patrulha, isso significa uma diferença de até 90 munições no total dos carregadores, entre uma e a outra arma, com clara vantagem para a espingarda automática israelita. Um dado relevante em episódios como os de 1 de abril, em que a força portuguesa foi alvo de uma emboscada e esteve envolvida em duros confrontos com um grupo armado durante quatro horas.

Exército recusa operações de logística

Nos documentos que o Observador consultou, o Comandante das Forças Terrestres não muda uma linha daquilo que foi a decisão inicial: as armas que estão a República Centro Africana são para manter.

É isso que consta de uma primeira resposta do tenente-general aos “páras”. Mas, face à insistência dos alertas para os problemas de segurança e eficácia, Guerra Pereira argumenta, através do seu anterior Chefe do Estado-Maior do CFT (agora, comandante nacional da Proteção Civil, coronel Duarte da Costa), que a força de paraquedistas que está na RCA desde o início de março já usa a G3 e com excelentes resultados operacionais. O Observador questionou o Exército sobre a forma como foi avaliada a eficácia dos militares em missão, mas até ao momento não obteve esses esclarecimentos.

Há dois argumentos que jogam contra as pretensões de quem defende a substituição da G3 pela Galil: além de a força de paraquedistas em missão pelas Nações Unidas na República Centro Africana (a MINUSCA) usar a G3, a arma alemã, com a sua munição de 7,62mm (contra os 5,56mm da israelita), garante um poder de fogo superior.

A vida dos militares portugueses na República Centro Africana. Os combates, os ataques e os medos

Há, no entanto, um “mas” que invalida esse argumento: é que as regras que os militares estão obrigados a respeitar, no âmbito de uma missão de paz da ONU, impedem-nos de abrir fogo contra alvos não identificados (por exemplo, contra a parede de uma casa onde podem estar abrigados civis). E, no combate homem a homem, o poder de fogo da Galil cumpre os requisitos.

O Exército também foi questionado sobre se existem ou não riscos de segurança para os militares portugueses devido ao uso da G3, se a eficácia fica comprometida, como alegam os militares que vão em missão daqui a menos de três meses, e o que impedia o envio das Galil para a RCA. Oficialmente, não foi dada qualquer resposta. Mas as razões para recusar a substituição das armas não passarão por argumentos financeiros — a tal palete de 5,1 mil quilos seguiria no mesmo avião em que os militares viajam para a RCA.

Militares portugueses acusados de “crimes contra a humanidade” na República Centro Africana

Apesar de não haver respostas do Exército, o Observador sabe que a hierarquia não quer, simplesmente, reabrir esse debate. Há quem argumente, de resto, que “uma arma é uma arma” e que os militares têm capacidade de ganhar rotinas com a espingarda alemã.

Humvees enviados para a missão comprometem treinos em Portugal

As armas não são o único problema. No início de maio, o Comandante das Forças Terrestres esteve na República Centro Africana de visita às tropas portuguesas. Guerra Pereira constatou de perto as marcas bem visíveis que um ano e meio de combates com grupos armados deixaram nos Humvees usados na missão — há vidros estilhaçados e blindagens perfuradas pelos tiros de elementos dos grupos armados que têm atacado a força nacional. Perante esse cenário, o tenente-general percebeu que a segurança dos militares portugueses estava comprometida e decidiu substituir as viaturas danificadas.

A “projeção” dos blindados começou a ser feita na semana passada, estando previsto que os cinco blindados chegassem esta semana à capital, Bangui, o que possibilitará que os Humvees danificados possam sair de circulação para serem reparados. O Diário de Notícias dizia tratar-se de um reforço da segurança da força portuguesa, mas não houve qualquer reforço do número de meios disponíveis, até porque a força destacada continua a ter a mesma dimensão: do universo de 20 carros disponíveis para a missão, seis estão atribuídos a cada um dos pelotões (há três, cada um com 30 paraquedistas) e outros dois ficam para o comando.

Um militar português ferido com estilhaços de granada na República Centro Africana

Mas os meios são limitados. Por isso, quando os cinco Humvees foram enviados para a RCA, os militares que estão a fazer o aprontamento para partir em setembro ficaram sem acesso aos carros com que deveriam treinar. Na prática, a maioria dos paraquedistas (dois dos três pelotões) ainda não teve qualquer contacto com os Humvee, estando a treinar com outro tipo de viaturas.

Até agora, a maior parte do treino foi feita com alguns Toyota Land Cruiser que estão à disposição do 2º Batalhão de Infantaria Paraquedista e que serviram para as equipas simularem ataques a edifícios e emboscadas, na semana de campo em Alcochete, no final de maio. Foi apenas uma solução de recurso, porque essas viaturas em nada se assemelham aos carros usados na missão da ONU — do número de portas, à disposição dos lugares e ao facto de nem sequer serem blindados — e não permitem fazer um treino aproximado à realidade.

As equipas não podem, por exemplo, treinar com rigor uma situação em que sejam alvo de um ataque surpresa durante uma patrulha em Bangui. Os Toyota, com duas portas (em vez das cinco dos Humvee) não permitem simular uma saída rápida para o exterior do blindado para responder ao fogo inimigo.

A expetativa é a de que, nas próximas semanas, sejam disponibilizados três Humvee (metade dos carros pedidos pela força) semelhantes àqueles que os militares vão encontrar na República Centro Africana. Quando forem entregues, depois de resolvidos os problemas mecânicos, permitirão um primeiro contacto com os blindados usados pelos militares portugueses na República Centro Africana.