O vídeo tem apenas 1 minuto e 10 segundos, mas esse tempo foi mais do que suficiente para Mário Centeno, enquanto presidente do Eurogrupo, se tornar no destinatário do tiro ao alvo à esquerda e à direita. Nele, Centeno dá as “boas-vindas” à Grécia enquanto “membro pleno” da zona euro, sem medidas impostas pela troika mas, também, sem desembolsos de ajudas financeiras. O vídeo, publicado no dia em que a Grécia terminou formalmente o terceiro resgate, causou polémica, com ataques de deputados do PSD (Miguel Morgado), do BE (Mariana Mortágua) e até do PS (João Galamba, ex-porta-voz do partido) — e ainda de Yanis Varoufakis, ministro das Finanças da Grécia por alguns conturbados meses em 2015.
Centeno fez um retrato cor-de-rosa da economia grega, sublinhando, também, a necessidade de o governo manter o rumo. Em que medida é que o relato corresponde à realidade? Centeno foi sério na análise? Foi “lamentável”, como disse Galamba? Ou o ministro português, como defendeu Varoufakis, falou como se fosse a “máquina de propaganda da Coreia do Norte”?
"Greece has regained the control it fought for", says Eurogroup President @mariofcenteno as #Greece today exits its financial assistance programme. ???????? @ESM_Press pic.twitter.com/owQzCIqrXQ
— EU Council (@EUCouncil) August 20, 2018
Crescimento a que preço?
“Hoje, o crescimento económico recuperou. Existe um superávit nas contas públicas e na balança comercial”
A Grécia deixa de estar sob resgate mas continua a estar ao abrigo de uma “Vigilância Reforçada” para garantir que cumpre os objetivos orçamentais definidos até 2022. Esses objetivos implicam um aperto orçamental de tal ordem que, na opinião do chefe da missão do FMI na Grécia, Peter Dolman, pode estrangular qualquer chance que Atenas tenha de um crescimento económico saudável nos próximos anos.
O objetivo é que, excluindo os gastos com juros de dívida, a Grécia obtenha mais 3,5% de receitas do que de despesas públicas. Essa é a meta para o chamado “saldo primário” até 2022 — depois, esse valor passa para um superávit menos ambicioso de 2,2%. Estes valores, diz Peter Dolman, “vão limitar a capacidade do governo para promover o crescimento”, seja pela incapacidade de fazer mais investimento público seja pela necessidade de taxar as pessoas e as empresas.
Numa visão que contrasta claramente com a de Mário Centeno, enquanto presidente do Eurogrupo, o responsável do FMI defende que, “como membro da zona euro, a Grécia perdeu a capacidade de definir uma política independente. As limitações orçamentais [que foram acordadas na cimeira de 21 de junho] significam que existem muito poucas ferramentas ao dispor, para estimular a atividade económica”.
A economia grega perdeu 27% do produto económico com a crise, fruto da austeridade no Estado e dos aumentos de impostos. Desde o ponto mais baixo — o primeiro trimestre de 2013 –, apenas recuperou 3%. Comparando com o momento do início da crise financeira, em 2008 (ano do colapso do Lehman Brothers), a economia grega só cresceu 3%, ao passo que Portugal recuperou já cerca de 10%, Espanha 14% e a Irlanda 48%. Neste momento, a economia grega está a crescer a cerca de 2% ao ano (com o turismo a contribuir com cerca de 20% dessa criação de riqueza).
Já no que diz respeito à balança comercial positiva que Centeno refere (“trade surplus“, enquanto a imagem mostra contentores a serem descarregados num porto), os dados contradizem-no. É verdade que as exportações gregas aumentaram o seu peso no PIB, passando de 24% em 2008 para 34% em 2017 (números da OCDE). No entanto, não só esta percentagem está muito distante da média europeia (que é de 46%) como da percentagem de Portugal (42%). Mais importante: o saldo entre as exportações e as importações gregas é negativo há muitos anos.
Em junho, o défice da balança comercial agravou-se para 1,97 mil milhões de euros (quando estava em 1,51 mil milhões no mesmo mês do ano passado). É certo que no mesmo mês as exportações gregas registaram um valor recorde (3,01 mil milhões de euros), mas as importações ascenderam a 4,98 mil milhões de euros (com um crescimento, sobretudo, das compras fora da UE). O melhor saldo da balança comercial grega desde 2009 foi em julho de 2015 (ainda assim com um défice de 634 milhões), enquanto o pior registo no mesmo período foi em janeiro de 2016, quando o saldo negativo era superior a 2,5 mil milhões de euros.
Que tipo de emprego há na Grécia?
“Novos empregos estão a ser criados. A economia foi reformada e modernizada”
Mário Centeno diz que estão a ser criados novos empregos. É indesmentível. Mas o que diz, por exemplo, a OCDE sobre a criação de emprego na Grécia? Há, de facto, uma diminuição da taxa de desemprego: dos 24,9% em 2015, passou-se para 21,5% em 2017. Atualmente está nos 20,2% (ainda que seja de 42,3% entre os menores de 25 anos). Para 2019, a organização prevê 19,4%. E que tipo de emprego existe hoje na Grécia? No seguimento das reformas laborais (que incluíram a redução do salário mínimo, a introdução de um salário abaixo do mínimo para jovens ou a suspensão de acordos coletivos de trabalho, entre outras medidas), “o emprego começou a recuperar” — diz a OCDE — e “os salários começaram a ajustar-se”. Sobretudo no sentido da descida.
As mudanças no mercado laboral levaram a cortes salariais severos, mas que restauraram rapidamente a competitividade da Grécia. No entanto, uma percentagem cada vez maior de empregos são temporários ou em part-time e pagos com salário mínimo”, escreve a organização.
O ministro das Finanças português também diz que a economia grega foi “reformada e modernizada. De acordo com o banco de investimento alemão Berenberg, há muito por fazer: “São precisas mais reformas que favoreçam o crescimento para melhorar o potencial da economia no longo prazo e para tornar mais eficiente o sector público”. E dá exemplos: a corrupção na Grécia ainda é um problema sério, os serviços do Estado continuam a funcionar de forma demasiado burocrática e a resistir à digitalização. A Grécia, sintetiza a consultora, “precisa de facilitar o acesso aos seus mercados, abolir os monopólios/oligopólios e eliminar barreiras [no acesso a vários] setores”, a exemplo do setor do táxi ou das farmácias.
Os investidores parecem querer dar um voto de confiança ao país, um dos poucos na zona euro onde as taxas de juro, acima de 4% a 10 anos, ainda oferecem um rendimento apetecível na era de juros ultra-baixos. “Apesar da recuperação económica lenta na Grécia, o país aplicou mudanças importantes no longo prazo e que tornam a economia mais dinâmica”, escreve Carsten Hesse, economista do Berenberg em nota de análise enviada aos clientes.
Um terço da população em risco de pobreza
“Eu sei que estas melhorias ainda não são sentidas por todos os segmentos da população mas, gradualmente, passarão a ser”
36,5%. Pelo menos um em cada três gregos, dos 18 aos 64 anos, está em risco de pobreza ou de exclusão social, indica o próprio governo grego num relatório de junho. E 20% dos gregos, um em cada cinco, está em risco de não conseguir fazer frente a despesas básicas, como pagar a renda, a conta da luz ou os empréstimos que tem junto do banco. É pelo menos esta fatia da população grega (no total, cerca de 10 milhões) que precisa de começar a sentir as melhorias referidas por Mário Centeno.
Mas esta é a taxa de risco. Depois disto existe a “taxa de privação material severa” real, ou seja, outra forma de quantificar quem está mesmo na pobreza. Segundo a OCDE e o Eurostat, esta taxa está em valores recorde na Grécia: perto dos 25% nos 18 aos 64 anos. Em 2009 esta taxa estava nos 10% e desde então tem vindo sempre a subir.
Por outro lado, mesmo quem tem trabalho na Grécia (uma em cada três famílias tem um dos seus elementos desempregado) está a receber salários cada vez mais próximos da linha de pobreza. Segundo a OCDE, “quase metade dos salários dos trabalhadores está abaixo da linha de pobreza de uma família de quatro”, que é de 656 euros brutos. Atualmente, o salário mínimo na Grécia está nos 585 euros. A linha de pobreza individual está nos 313 euros.
O emprego é uma das áreas onde existe maior confiança, pelo menos por parte de quem olha de fora para a Grécia na perspetiva de investir. Como está a acontecer em Portugal, a expectativa é que a retoma anime a contratação, depois das reformas laborais que foram aplicadas, que o turismo dê uma (valiosa) ajuda e que o aumento dos fundos estruturais que vão chegar de Bruxelas contribua para baixar a taxa de desemprego.
Por outro lado, ao contrário do que diz Centeno, há uma área onde os gregos continuam a não ser exatamente membros plenos da zona euro: ainda estão em vigor controlos de capitais (iniciados em 2015). À medida que os controlos de capitais forem levantados, se tudo correr como previsto, esse é mais um fator capaz de dinamizar a economia, o investimento e a contratação.
Grécia reganhou controlo, mas continua sob pressão
“A Grécia reconquistou o controlo pelo qual lutou. Com o controlo vem a responsabilidade. A Grécia pagou caro pelas políticas erradas do passado, portanto voltar atrás seria um erro grave”
Uma área onde a Grécia vai continuar sob pressão é a banca, entupida de créditos tóxicos como nenhum outro país da zona euro. Cerca de 45% dos empréstimos que a banca grega tem concedidos são problemáticos. Em simultâneo, a banca grega continua a ter mais empréstimos do que depósitos (um “rácio de transformação” de 120%), algo que também era um problema em Portugal mas que foi corrigido.
Estes são dois grandes travões à capacidade dos bancos para emprestarem à economia. A solução passa por incentivar (ou obrigar?) os bancos gregos a fazerem vendas de lotes de créditos, o que necessariamente vai envolver o reconhecimento de perdas em relação ao valor que está contabilizado nos seus balanços — e, com os rácios de capital ainda titubeantes, a última coisa de que os bancos querem ouvir falar é de acelerar vendas de ativos, ao “desbarato”, que eles acreditam poderem vir a valer mais caso a economia continue a crescer.
Quando, no vídeo, Mário Centeno lê no teleponto que “com o controlo vem a responsabilidade” aparece, na imagem, uma fotografia de Alexis Tsipras, o primeiro-ministro grego. Este poderá ser um sinal de que o presidente do Eurogrupo sente a necessidade de lembrar Tsipras que as políticas têm de ser mantidas — isto é, não estará 100% seguro de que assim será.
O primeiro incentivo para que a Grécia mantenha o rumo é financeiro. Apesar de deixar de receber desembolsos, a Grécia vai receber transferências relacionadas com os lucros do Banco Central Europeu e dos bancos centrais nacionais com a dívida pública grega que compraram no mercado, a preços mais baixos (e, portanto, juros mais altos, nas alturas de maior incerteza) e que estão a ser reembolsadas a 100% do seu valor.
Varoufakis: vídeo de Centeno “parece da máquina de propaganda da Coreia do Norte”