Foi uma autêntica maratona de audiências. Marcelo Rebelo de Sousa esteve praticamente todo o dia sentado na sala onde costuma receber os partidos a assistir a um entra-e-sai frenético que começou às 10h00, com o Livre, e terminou já depois das 20h00, com a auscultação do PS. No total, foram dez os partidos que o Presidente da República recebeu. Um recorde, tendo em conta que, além deste número histórico, as eleições legislativas de domingo determinaram o quadro parlamentar mais diversificado de sempre, com partidos que vão da esquerda radical à extrema-direita. No final deste longo dia de reuniões em que se avaliaram os resultados das legislativas e se discutiram as perspetivas para a próxima legislatura, António Costa saiu indigitado primeiro-ministro e Marcelo levou para casa alguns recados.

António Costa, já indigitado primeiro-ministro: “Não há uma maioria para aprovar uma moção de rejeição”

César passa a bola à esquerda, que pediu que o PS “não tivesse maioria absoluta”

O PS nunca pediu uma maioria absoluta de forma direta ao longo da campanha. Foi pedindo uma vitória “expressiva”, “clara” ou “absolutamente inequívoca”. Mas nunca conjugou as duas palavras mágicas. No entanto, responsabiliza os partidos que “durante a campanha apelaram para que o PS não tivesse maioria absoluta” pelo facto de não ter havido um resultado obviamente estável. É a esses que cabe agora “garantir a estabilidade numa situação de maioria relativa“.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta foi a mensagem que Carlos César e a restante comitiva socialista levaram ao Palácio de Belém para a última das dez audiências de Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente do PS não tem dúvidas de que o partido já fez a sua quota parte e que cabe a quem queria que o desenho parlamentar fosse semelhante ao que saiu das eleições a apresentação de soluções. É, aliás, isso que os socialistas vão tentar averiguar no périplo que farão na quarta-feira pelas sedes de Livre, PAN, Verdes, PCP e Bloco de Esquerda.

O presidente do PS anunciou ainda que o “caderno de encargos” do PS é o seu programa eleitoral, mas admite vir a a aceitar contributos que o “clarifiquem ou enriqueçam”. Sempre e quando não “desvirtuem” a essência do programa que levaram a eleições.

O socialista não revelou qual o modelo que o PS prefere para governar, mas lembrou que os Orçamentos de Estado são “momentos essenciais para que a estabilidade se reconfirme”. Até ver, os socialistas parecem estar abertos às várias opções que os partidos à sua esquerda têm trazido para o debate.

Rio não quer que acordo de esquerda inviabilize as famosas “reformas estruturais”

Rui Rio saiu da reunião com o Presidente da República convencido de que “vai haver a maioria de esquerda”. Assumindo que esse é o cenário mais provável para os próximos quatro anos, o líder do PSD deixou já os primeiros alertas, manifestando o desejo de que o entendimento que o PS pode alcançar com os partidos à sua esquerda “não vede a possibilidade de se fazerem determinadas reformas” estruturais.

O presidente social-democrata não vê “novidade” no “desejo do PS” de “construir essa estabilidade com o BE e o PCP ou só com o BE se não puder ser com o PCP”.

Apesar de antever um novo modelo de “geringonça” para os próximos quatro anos, Rio fez questão de estabelecer uma linha divisória entre esses acordos de governação e os entendimentos quanto a temas estruturais. “Coisa diferente é a disponibilidade para fazer reformas de ordem estrutural, acordos ao nível do Parlamento”. Aí, Rio admite que depende dos entendimentos à esquerda, nomeadamente “o acordo que venha a ser estabelecido entre PS e BE porque pode vedar a possibilidade de se fazer determinadas reformas”, afirmou. “Não pode haver nenhuma reforma estrutural no país sem a colaboração dos dois grandes partidos”, acrescentou ainda.

Já quanto à situação interna do PSD, Rui Rio disse que se mantém em reflexão e considerou que o Palácio de Belém não era o local mais indicado para falar sobre esse tema. “Este momento é um ato solene e não seria lógico que o PSD estivesse em grandes tumultos antes de isso acontecer. Na devida altura falarei”. Também não se quis pronunciar sobre o artigo que Cavaco Silva publicou no Observador esta terça-feira, onde aponta Maria Luís Albuquerque como um elemento importante para o futuro do PSD.

BE prefere acordo escrito e está disposto a avançar mesmo sem o PCP

A comitiva do Bloco de Esquerda foi a Belém repetir o que Catarina Martins dissera no rescaldo das eleições legislativas: fez saber a Marcelo Rebelo de Sousa que concorda com a indigitação de António Costa como primeiro-ministro e que está disponível para contribuir para uma solução de Governo. Para isso, aceita negociar “orçamento a orçamento” ou “caso a caso” se essa for a opção do PS. Mas esclarece que prefere avançar para um acordo “com horizonte de uma legislatura”, escrito, incluindo já no Programa do Governo as medidas negociadas previamente com os socialistas. E se o primeiro caso converge com a postura do PCP o segundo dela difere. Algo que não é impeditivo para o BE, que pode avançar mesmo que o PCP não o faça.

“Sempre valorizámos muito a convergência com o PCP. Agora: somos partidos autónomos e faremos os caminhos que acharmos importantes fazer”, afirmou. Esta é a grande novidade no discurso de Catarina Martins, que, na noite eleitoral, tinha evitado responder a esta questão. Fica assim claro que se os comunistas não quiserem fazer um acordo com o PS, o BE poderá avançar na mesma.

Acompanhada por José Manuel Pureza e Pedro Filipe Soares, Catarina Martins assumiu que os bloquistas vão querer “negociar soluções no programa de Governo com horizonte de uma legislatura” embora tenha reconhecido que “vitória expressiva” do PS confere aos socialistas “legitimidade para fazer um Governo minoritário que negoceie caso a caso”.

Para um caso ou para outro, as linhas vermelhas que o Bloco de Esquerda vai impor já estão definidas: acabar com os cortes da troika que ainda subsistem na legislação laboral; apostar no aumento dos salários, a começar pelo salário mínimo nacional; garantir que o Serviço Nacional de Saúde é exclusivamente público; e reforçar o investimento público, nomeadamente nas áreas da habitação, da emergência climática e dos transportes.

PCP aceita negociar caso a caso com um PS “que pode provocar instabilidade”

Ao contrário do BE, que não se cinge apenas a uma solução, o PCP parece apostado em viabilizar um governo do PS apenas por uma via: sem “qualquer papel” escrito e através de uma negociação “caso a caso”. Apesar de manifestar esta disponibilidade, Jerónimo de Sousa saiu da audiência com o Presidente da República a avisar ainda que “naturalmente o Governo do PS pode provocar instabilidade, se não resolver problemas adiados”.

O líder comunista disse, no Palácio de Belém, que a indicação de António Costa como primeiro-ministro não levanta “problema” e salientou que “não há necessidade de outro posicionamento ou de qualquer papel”. Lembrou que em 2015 esse acordo escrito só existiu porque “Presidente de então [Cavaco Silva] o exigiu de forma persistente”. Agora, e perante um quadro diferente, Marcelo Rebelo de Sousa “não fez nenhuma exigência”.

Assim, os comunistas estão apenas disponíveis para negociar iniciativas legislativas, “caso a caso”. “Cada iniciativa tem um valor em si mesmo, negativa ou positiva, e tal como fizemos mesmo em relação ao Orçamento do Estado, caso a caso, é ao pé do pano que se talha a obra”.

Do PCP, com quem o PS se reúne na quarta-feira às 16h00, António Costa terá “grande disponibilidade para concretizar avanços e firmeza para evitar que as coisas andem para trás no plano dos direitos e da recuperação de rendimentos”. A estabilidade da última legislatura só foi possível de alcançar porque, entendem os comunistas, “houve convergência sobre direitos importantes”, não devido à existência de um acordo escrito.

CDS não se opõe à indigitação de Costa. Cristas não diz se deixa Parlamento

O CDS-PP, que foi um dos grandes derrotados da noite de domingo, foi a Belém com uma comitiva encabeçada pela ainda líder do partido, Assunção Cristas. Perante a vitória do PS e a grande redução do grupo parlamentar centrista, o partido fez saber a Marcelo Rebelo de Sousa que não se vai opor a um governo socialista, “em consonância com o resultado eleitoral”.

Por uma questão de princípio, Assunção Cristas assumiu que vai aceitar a indigitação de António Costa. “É o líder do partido mais votado” — recorde-se que em 2015 o CDS criticou a legitimidade do Governo de António Costa, indigitado primeiro-ministro depois de rejeitado no Parlamento o programa do Governo PSD/CDS, precisamente com o argumento de não ter sido o partido mais votado.

Para o futuro, a presidente do CDS prometeu fazer “uma oposição sempre construtiva e sempre representando os que confiaram” o voto no partido. A líder centrista, que na noite eleitoral anunciou que vai abandonar a direção do partido, não quis responder à pergunta sobre se pretende manter o lugar de deputada na Assembleia da República.

À semelhança do que aconteceu na noite eleitoral, Assunção Cristas fez uma declaração parca em palavras antes de abandonar o Palácio de Belém.

Partidos eco-friendly dispostos a apoiar indigitação de António Costa

André Silva, líder do PAN, que viu a sua representação quadriplicada — passando de um para quatro deputados — referiu à saída da reunião com Marcelo Rebelo de Sousa não se vai opor “a que se faça essa indigitação [do primeiro-ministro]” e informou que está disposto a contribuir para uma solução governativa. Mas avisa que só tomará uma posição depois da reunião com António Costa. “Queremos ouvir o que é que o PS pretende da reunião com o PAN”, sublinhou.

Uma coisa já está definida na cabeça dos animalistas/ambientalistas: “O PAN não está, à partida, disponível para estabelecer coligações partidárias e acordo de legislatura”. Mas André Silva explicou que isso não impede que haja da parte do seu partido “uma postura sempre pró-ativa e muito construtiva de diálogo e de pontes com o Partido Socialista”.

Postura semelhante foi aquela que adotou o outro partido eco-friendly, o Partido Ecologista “Os Verdes”. O líder, José Luís Ferreira, informou Marcelo Rebelo de Sousa que, “tendo em conta os resultados eleitorais, na perspetiva do Partido Ecologista ‘Os Verdes’, o Presidente deverá indigitar António Costa como primeiro-ministro”. Da parte do PEV haverá “disponibilidade e disposição para aprovar propostas que venham promover justiça social e equilíbrio ambiental”.

Três novos partidos no Parlamento: duas “negas” e uma via aberta para Costa

Já André Ventura, presidente do Chega, partido que conseguiu eleger um deputado, informou que não vai apoiar a indigitação de António Costa como primeiro-ministro: “O Partido Socialista não contará com a viabilização nem com o apoio do Chega“. Mas não exclui a hipótese de vir a entender-se com os socialistas pontualmente, nas medidas que avaliem como sendo “proveitosas para o povo português”.

Por sua vez, Carlos Guimarães Pinto, líder do Iniciativa Liberal, que se vai estrear no Parlamento um ano e meio depois de ter sido criado, anunciou que também não pretende apoiar a indigitação de António Costa como Chefe de Governo. “Informámos o Presidente da República que não vamos apoiar a indigitação do primeiro-ministro António Costa”, disse o presidente do IL, que mais tarde sentiu necessidade de esclarecer a sua posição no Twitter, afirmando que o partido não está contra a indigitação: “Só não apoiaremos o governo indigitado”, escreveu nas redes sociais.

Postura diferente foi a que assumiu o Livre, de Rui Tavares e que vai estar representado na Assembleia da República por Joacine Katar Moreira. À saída da reunião com o Presidente da República, a deputada eleita pelo Livre afirmou que o partido vai apoiar a indigitação de António Costa mas mostrou não estar disponível para uma coligação com o PS, referindo que essa deve ser a responsabilidade dos partidos da chamada geringonça — isto é, o PS, BE, PCP e PEV. “É necessário que haja uma responsabilização e um entendimento entre os que efetivamente iniciaram isto. E no nosso olhar nós estamos completamente disponíveis para conversar e dialogar com outros partidos políticos. E numa eventualidade consideraríamos útil e necessário que houvesse um espécie de entendimento multilateral, [mas] que não seja algo iniciado hoje, com a eleição de uma única deputada”, disse.