*Entrevista feita em conjunto com Nélson Ferreira e Diogo Teixeira Pereira da Rádio Observador

A incerteza que atravessa o mundo não deixa ninguém indiferente e neste momento em que se estuda a melhor forma de se irem levantando as restrições do confinamento, essa sensação é ainda mais presente. Como muitas outras áreas que ainda esperam perceber aquilo que lhes será exigido para voltarem a abrir as portas, a restauração está num impasse. O que vai ser preciso mudar? Que desafios ainda existem pelo caminho?  Haverá saúde económica para seguir em frente? Estas e outras questões continuam a assombrar empresários da restauração e cozinheiros e foi para perceber um pouco mais sobre o assunto que o Observador falou com Ljubomir Stanisic.

A poucos dias de se perceber o que estará por vir com a reabertura da vida “normal”, o proprietário dos lisboetas 100 Maneiras e 100 Maneiras Bistro lança duras críticas à atuação do Governo, contesta a forma como a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) está a lidar com as negociações com o Estado e as medidas de proteção que têm sido ventiladas. Confessando que já teve de recorrer a créditos pessoais para evitar despedir funcionários, pinta um cenário preocupante para aquilo que virá: “Se a reconquista do cliente vai demorar muito tempo, a do turismo nem sei quando voltará – e isto é a maior arma económica do país.”

[A entrevista de Ljubomir Stanisic na Rádio Observador]

Ljubomir Stanisic critica medidas de contenção: “Não quero trabalhar com um fato da Nasa dentro do restaurante. Não vou a Marte”

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Há poucas horas terminou uma comunicação da AHRESP, via internet, onde a secretária geral Ana Jacinto pediu calma aos empresários e cozinheiros porque o suposto Guia de Boas Práticas que andou a circular não era a versão final que foi entregue às autoridades. Disse ainda que não está previsto, por exemplo, a colocação de acrílicos para o atendimento ao público nos restaurantes e nem sequer a medição de temperatura. Teve oportunidade de ver essa comunicação? O que pensa disto que foi dito?
Na minha opinião, o primeiro documento que circulou – que foi feito pelos engenheiros da AREHSP – foi completamente surreal. Foram referidas normas que são impraticáveis, para qualquer um de nós. Qualquer restaurante, da tasca ao fine dining, ia à falência. Normas surreais, impraticáveis e que para nós, financeiramente, não eram sustentáveis. Foi exigida uma reunião com a AHRESP e o Pedro Gonçalves do Ramiro e o José Avillez transmitiram-lhes as exigências que apresentámos em grupo. Pelos vistos, foi escrita uma segunda versão. O único problema é que nenhum de nós, restauradores, teve acesso a esse comunicado. Não pudemos dizer se gostávamos ou não daquilo que nos vai representar. A AHRESP é uma entidade que nos representa, todos pagamos-lhe quotas e acho que todos devíamos ter acesso a esse documento para saber exatamente que normas vão ser sugeridas.

É o governo que vai decidir o caminho que vai tomar mas, de qualquer maneira, todos os associados deviam ter direito de ler aquilo que é apresentado. Pagamos a uma associação todos os meses para ela nos defender e estar à nossa frente. Não estou de acordo com a conduta da AHRESP desde o início mas isso é a minha opinião pessoal. Acho que isto tem de ser um trabalho unido, toda a gente precisa de ajuda.

Na sua opinião o que acha serem medidas razoáveis de proteção tanto dos clientes como dos funcionários?
Nós todos praticamos HACCP que é uma norma exigida pelo Governo no país inteiro. Isso faz com que nós já tenhamos de cumprir regras apertadas de higiene. Se as aplicarmos e medirmos temperatura do cliente na entrada isso é mais que suficiente. Temos de perceber uma coisa: nós somos hospitaleiros, em primeiro lugar, mas não trabalhamos num hospital. Isto não é uma fábrica de químicos, nós damos prazer às pessoas – música, ambiente, comida, copos… Tudo faz parte de uma viagem. Não é só alimentar os clientes. Normas excessivas e exageradas não vão funcionar e vão levar muitas pessoas à falência. Temos de perceber que qualquer restaurante deste país, se tiver menos de 50 ou 60% de ocupação, não é viável. É um negócio falido.

AHRESP pede “calma”. “Não se precipitem a comprar acrílicos e termómetros”, não é isso que está previsto no guia

Todos nós pagamos impostos. Eu pago-os há 19 anos, desde que sou empresário. Pago tudo o que é o meu dever: a Segurança Social, TSU,… Tenho direito a lay-off como todas as pessoas que também pagam e não têm dívidas ao Estado. Os apoios estão a sair muito dificilmente, com muitas complicações e exigências de terceiros e quintos e sétimos papéis, tudo em vez de se simplificar. Nos queremos voltar a apoiar o Governo, para mim é indiferente quem está lá, só interessa a forma como nos guiam. Eu tenho direito de reclamar porque também, se alguém do Governo for ao meu restaurante, pode-me dizer que o prato está frio ou a comida tem pouco sal. Estes apoios não são claros nem eficientes, são muito complicados… Desnecessariamente. E isto é assim para a restauração toda, pelo país inteiro.

Já falou sobre as rendas…
As rendas, por exemplo: primeiro o Governo deu apoios aos proprietários mas depois retirou-os e agora temos de pagar rendas na totalidade quando não estamos a usufruir do nosso espaço comercial.  Porque não nos apoiam nisto? Para dividirmos isto a meias! Se não estamos a cumprir a nossa função como podemos pagar as rendas? Há medidas  que não são claras e são só para complicar, para ganhar tempo. Vamos ver a solução que o governo vai anunciar. Nós queremos abrir, queremos trabalhar. Não quero, garantidamente, trabalhar com um fato da NASA dentro do meu restaurante, não vou a Marte!

Como está a ser impacto real da crise nos seus negócios?
Gastei todo o dinheiro que tinha na minha tesouraria. Pedi crédito pessoal para conseguir pagar aos fornecedores, as rendas, a Segurança Social, o IVA… O governo obrigou-nos a pagar todas as contas, por isso recorri aos meios todos, às contas pessoais, para pagar. Recorri ao lay-off como deve ter recorrido 90% da restauração deste país. Pelo menos 40% foi recusado de imediato e ainda não recebi mais nada. A linha Covid foi-me autorizada pelo banco mas pelo governo ainda não… O que posso dizer é que estou a olhar para uma mão cheia de nada. Dificuldades? Estamos todos a passar por elas. Tenho 80 famílias a depender de mim, estou a tentar não despedir ninguém, segurar todos os postos de trabalho enquanto espero que o governo nos abra as linhas de apoio. Somos um dos principais responsáveis pelo PIB do país, deixem-nos trabalhar mas em condições. Não vou trabalhar com um fato de astronauta dentro de um restaurante. Dêem-nos apoio para conseguirmos arrancar.

Lojas mais pequenas, cabeleireiros, livrarias, stands de automóveis. O que vai abrir daqui até junho

O governo comunicou que há a possibilidade de voltarmos para trás se a doença se espalhar. Então, vamos abrir agora, vamos investir dinheiro em formação sobre Covid e outros materiais de proteção. Se voltarmos para trás, vamos à falência novamente porque estamos a caminhar para um investimento que não conseguiríamos suportar. As medidas têm de ser mais claras. As linhas têm de ser mais diretas e a AHRESP tem de nos comunicar o que está a apresentar ao governo e não atuar sozinha. É muito complicado: circulam muitas informações, há quem limpe as mãos disto e diga que está tudo bem e que a economia vai voltar – vai voltar o caraças! Como é que vai voltar?! Pelo menos 20% da restauração já faliu. Imagino o resto das empresas pequenas, os cabeleireiros, os tatuadores, etc…

Tem-se falado que o próprio público pode demorar até sentir confiança para voltar a frequentar espaços com outras pessoas. Concorda?
Eu próprio tenho algumas dificuldades em imaginar-me a ir aos sítios quando o governo ordenar que já se pode abrir as portas e ir para a rua. Todos nós queremos ir para a rua, para os restaurantes, para o teatro ou cinema. Isso é garantido, estamos fartos de estar em casa. Agora, são normas que o governo implementou e temos de as seguir. A partir de agora, conquistar os clientes vai ser a coisa mais difícil que teremos de superar. As pessoas têm medo, já estão habituadas a cozinhar em casa e ainda bem, quer dizer que passaram tempo com a família. Reconquistar o cliente vai demorar um ano, no mínimo. E neste processo todo vão haver muitas baixas, muitos feridos, muitos mortos no sentido empresarial. Se a reconquista do cliente vai demorar muito tempo, a do turismo nem sei quando voltará – e isto é a maior arma económica do país. Teremos de mostrar o nosso bom exemplo. Somos um país que tem seguido as normas, não temos sequer mil mortos, algo que acho ótimo. Tem de ser por estas linhas que nos temos de guiar.