Jorge de Sena, o primeiro a traduzi-la para português, descreveu assim Emily Dickinson:

“Anti-romântica, anti-descritiva, anti-narrativa,anti-figurativa, anti-discursiva; fazendo, na concisão reservada aos madrigais e cantigas graciosas, uma poesia visionária, ao mesmo tempo ironicamente lúcida até à crueldade, e dilacerantemente metafórica até à ambiguidade total (…) compreendeu que a sua personalidade simples e devoradora da mínima parcela de vida à sua volta aterraria meio mundo, compreendeu também que a sua poesia teria de longamente aguardar para ser aceite…”

Emily Dickinson passou pela terra entre 1830 e 1886 como um corpo celeste discreto e misterioso cuja existência poucos, muito poucos, detetaram. Teria que passar quase um século até que, em 1955, a sua poesia fosse finalmente publicada, sem cortes, nem arranjos, mas na sua forma excêntrica face a tudo o que tinha sido feito, uma modernista que nunca ouviu falar no modernismo, a filha de um advogado puritano de estrita observância religiosa,  que negava Deus e arrancou para si o papel de demiurga do seu próprio universo. Que percebeu que a todos os espíritos foi dado o poder de moldarem a matéria na sua fecundidade infinita, na sua ductilidade, no seu secretismo, nos seus conflitos, que tudo neste universo ondula de possibilidades, tudo espera o sopro e as mãos que moldem a sua beleza e o seu terror.

Emily Dickinson pertencia à alta burguesia da cidadezinha de província Amherst, no Massachusetts, descendente dos primeiros puritanos que chegaram à América. Nunca casou, raramente saía de casa — e mais tarde raramente saía do quarto que era o seu. A partir dos 30 anos começou a vestir-se sempre de branco, encarnando a imagem da pureza total. Hábito que mais não era do que uma das muitas ironias cheias de subtileza que engendrava contra o meio profundamente religioso e puritano onde se movia e no qual ela era uma bizarria: “Sou o único canguru no meio da beleza”, escreveu.

Nas cartas que enviava, ou não assinava o seu nome ou assinava num cartão à parte. Como se essas missivas não lhe pertencessem, mas sim ao que chamava “uma pessoa suposta”, recusando e questionando, assim, toda a ideia de autoria e autoridade que hoje se tornou uma marca feita a ferro e fogo na pele do meio artístico: o nome próprio ostentado com foguetes. Também recusou sempre publicar os poemas que escrevia. Apenas 10 foram publicados em jornais. Mas, depois da sua morte, a irmã, Lavinia, encontraria, numa caixa fechada, cerca mil e oitocentos poemas, uns terminados, outros em rascunho. Num deles pode ler-se:

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Publicar — é o leilão

Da mente humana —

Justificada — a pobreza

Para coisa tão vil

(…)

Sê — no lote– mercador

Da mais Divina Graça

Mas não reduzas o Humano Espírito

À desgraça do preço

Nesses muitos papéis estava mais uma das suas curiosidades: um conjunto de breves poemas escritos em envelopes usados, que ela, numa parcimónia típica dos puritanos, reutilizava na parte em branco. São estes poemas que a Edições do Saguão acaba de lançar pela primeira vez em língua portuguesa. Poemas Envelope (edição bilingue) é uma pequena preciosidade ali entre a literatura e a arte, pois o livros não contêm apenas os poemas tardios de Dickinson, mas também imagens fac-similadas dos envelopes originais escritos a lápis de carvão, pelo punho da poeta, numa letra instável. Nestes envelopes encontram-se ainda vestígios das suas dúvidas, das hipóteses que deixa em aberto em palavras anotadas por cima de outras palavras, frases escritas lateralmente criando ainda mais ambiguidade numa poesia já tão ambígua.

Capar do livro “Poemas Envelope”. Edições do Saguão. PVP, 16 euros

Mariana Pinto dos Santos, fundadora das Edições do Saguão (o lugar da casa onde as janelas abrem para outras janelas), contou ao Observador que descobriu, em Londres, este livro elaborado pela chancela norte-americana New Directions:

“Eu e o meu companheiro Rui Miguel Ribeiro, responsável pela parte gráfica da Saguão, vimos este livro, apaixonámos-nos tentámos comprar os direitos sem muita esperança de o conseguir, mas conseguimos. Esta edição resulta de um longo trabalho que investigadores americanos fizeram sobre o que era considerado ‘refugo’, compilando e e estudando estes envelopes rasgados de Emily Dickinson.  O livro que publicámos, Poemas Envelope, é a tradução da antologia Envelope Poems  publicada pela New Directions, uma versão em formato pequeno e acessível, feita a partir de uma edição luxuosa de grande formato, chamada The Gorgeous Nothings, para a qual a New Directions se associou à galeria Christine Burgin para fazer a edição dos envelopes da E.D. a partir do trabalho de Jen Bervin e Marta Werner, com o contributo da poeta Susan Howe. O objectivo era transcrever estes envelopes da forma mais fiel possível, pois os estudos feitos mostram que a forma e o conteúdo dos poemas está ligado à forma do envelope. Essa arrumação está fielmente representada no grafismo do livro”.

Com tradução feita pelo poeta Rui Pires Cabral e Mariana Pinto dos Santos e revisão de Jeffrey Childs, a pequena obra reúne poemas escritos, na sua maioria, entre 1870 e 1885. A poeta Susan Howe classificou como “conexões sem conector” estes poemas tardios de Dickinson, cada vez mais radicais, comoventes e dirigidos a ninguém.

Paginas 10 e 11 do livro “Poemas Envelope”, Emily Dickinson, Edições do Saguão. Com fac-similes dos envelopes originais

“Este livro está na fronteira da literatura e da arte que nasce dos objetos considerados inúteis e, neste sentido, faz quase lembrar os Microgramas de Robert Walser”, diz Mariana Pinto dos Santos, que além de editora é historiadora de arte.

“A minha pequena força explode”

Contemporânea de Walt Whitman, leitora de Shakespeare, Milton, Elizabeth Browning, Emily Dickinson tinha uma profunda consciência do poder da palavra que, como as mãos,  molda a forma como o mundo nos aparece, mas também, como mais tarde perceberam Mallarmé ,Valery ou Fernando Pessoa, que o “Eu” é ele próprio um outro, logo também matéria moldável, metamórfica, transgressora.

Habito a Possibilidade —

Uma Casa mais bela do que a Prosa —

Em Janelas mais numerosa —

Em Portas —  superior —

(…)”

Ao afirmar que habita “a possibilidade”, Dickinson demonstra que dentro da sua cidadezinha, da sua casa, do seu quarto, da sua rejeição da vida social, estava disponível para o devir e as suas multidões. Os seus sentidos tinham-na posto em contacto com a mais profunda natureza humana. O seu pequeno corpo continha uma memória tão profunda como o seu plasma sanguíneo, mas também tinha a capacidade canina de ouvir os mais secretos sons que emanam dos soalhos, das paredes, das sombras e das luzes das casas. Compreendeu, sem nunca ter visto, o horror das grandes cidades nascentes no século XIX e com elas o tráfico e a pretensão, a vulgaridade, os equívocos. Dentro da sua casa de Amherst ela tão livre, que, mesmo sendo mulher, permitia-se ser irónica, provocadora ou ser, como escreve a investigadora portuguesa, Maria Irene Ramalho, “uma poeta de pose imperial”.

Depois de Jorge de Sena, a poeta Ana Luísa Amaral traduziu para português Duzentos Poemas de Emily Dickinson (Relógio d’Água), seguidos de um posfácio rico e estimulante sobre a vida e a obra da genial poeta, que explodiu a poesia americana e cujos ecos dessa explosão ainda se ouvem e se sentem, quando lidamos com todas as formas de subversão que ela impôs à Língua, à gramática, à sintaxe, à temática, que continham já  o carácter experimentalista, que viria a definir a arte do século XX.

A “subversão” que Dickinson faz dos valores canónicos, diz-nos  ainda Amaral, “passa não só pela subversão das normas sociais e religiosas vigentes: passa também pela subversão dos valores canónicos literários”, de uma forma que ainda hoje há tanto na sua poesia que nos escapa. Ralph Waldo Emerson havia dito que ela escrevia “como se tivesse sido tomada por febres”. Mas ela tinha bastante consciência que se fosse publicada seria considerada louca e, numa carta ao seu mentor, Thomas Higgins, um ativista da causa feminista e abolicionista, que se tornou, ao longo dos anos, o seu principal interlocutor e responsável pela preservação e divulgação da sua obra, Emily diz que publicar é algo “estranho” ao seu pensamento” e, caso o fizesse, seria considerada “espasmódica e “descontrolada”. Basta ler o que escreveu Emerson para percebermos que ela tinha razão e que compreendia muito bem a dimensão da sua transgressão.

Não publicar, não ser reconhecida, poder ficar para sempre longe do mundo não devem ser questões confundidas com qualquer fragilidade emocional, ou insegurança. Pelo contrário, como escreveu Sena, ela tinha a coragem de ser “uma personalidade por conta própria”.

Eis a minha carta ao mundo

Eis a minha carta ao Mundo

Que nunca me escreveu —

Notícias simples que, terna e Nobre —

contou a natureza

Foi dada a sua Mensagem

A mãos que eu não posso ver —

Gentis — patrícios — por seu Amor —

Dai-Me terna sentença”

As cartas, os pequenos papéis com poemas que oferecia a convidados de sua casa, mostram que Emily sentia que podia ler a natureza e que isso era um privilégio de poucos do qual se orgulhava. As suas cartas, como os seus poemas, dirigiam-se não apenas à Nova Inglaterra, mas ao vasto mundo, às mãos que ela não podia ver. E é certo que demoraram a chegar ao mundo as suas cartas-poema.

Hoje, a história da publicação da obra de Dickinson, com todos as tentativas de a tornarem domada, legível, fácil deveriam servir para questionarmos a forma mercantil como a arte que é produzida e recebida atualmente é moldada para ser domada, legível, fácil. Que a obra desta anónima e excêntrica mulher de Amherst tenha sobrevivido é um milagre, só possível porque houve pessoas que não fugiram aterrorizadas perante a sua poesia assente em elipses, expurgada de sentimentalismo, refinada e limpa, magra até ao osso, dizendo o essencial com uma gramática por si inventada e que ainda hoje é insuportável para muita gente desabituada de frequentar silêncios e espaços vazios.

Paginas 68 e 69 com o fac-simile do envelope e o poema que Emily Dikinson nele deixou

As suas cartas, que eram na verdade poemas, foram a sua única e material ligação ao mundo fora da casa paterna. Por isso estes Poemas Envelope agora publicados completam assim um círculo, forma que ela tanto gostava; eram restos de cartas recebidas, provavelmente em resposta às suas, que ela voltava a preencher como que mantendo o diálogo com o emissor daquele velho envelope, indiciando aquilo que o filósofo russo Mikhail Bakthin dizia ser o diálogo infinito do mundo, onde cada um de nós é apenas mais um elo desse longa conversa que nos precede e nos procede.

Como escreve Ana Luísa Amaral, “excessiva em relação ao seu tempo. Excessiva em relação ao nosso pela opacidade que a sua leitura gera”, ela desafia ainda o nosso tempo onde todos os dias se criam máquinas capazes de reproduzir a nossa imagem até aos poros, ao recusar auto-representar-se. A sua poesia não é auto-biográfica e quando Thomas Higgins lhe pede que mande uma fotografia, ela mente dizendo que não tem (tem apenas um daguerreótipo) e traça-lhe um auto-retrato com palavras irónicas:

“Poderíeis acreditar-me — sem? Não tenho nenhum retrato, de momento, mas sou pequena como uma carriça e o meu cabelo é atrevido, como a casca da castanha — e os meus olhos, como Xerez no copo, que o convidado deixa — Serve na mesma? (…).

Numa casa com Saguão

Este Poemas Envelope, livro artístico de uma poeta de culto mas para poucos leitores, é apenas mais um dos vários que a editora de Mariana Pinto dos Santo e Rui Miguel Ribeiro desejam publicar desde que, em 2017, fundaram as Edições do Saguão, depois de terem tido a Pianola em conjunto com a Associação Homem do Saco. Aqui na Saguão procuramos editar livros com os quais sintamos algumas ‘afinidades electivas’.Desde o formato dos livros, ao grafismo até aos autores e obras, tudo é escolhido cuidadosamente”, diz-nos Mariana Pinto dos Santos, historiadora de arte a trabalhar com várias editoras, nomeadamente na edição da obra completa de Almada Negreiros com a Assírio & Alvim.

“Não são livros de luxo, são acessíveis ao grande público e estão à venda em todas as editoras independentes do país”, explica Mariana. “Na Bertrand e na Fnac podem estar ou não estar porque eles pedem-nos diretamente os livros que estão interessados em ter e normalmente em poucas quantidades, que nunca são repostas”, conta.

Apesar disto, em apenas três anos a Saguão já tem onze livros publicados. É, neste momento, a editora quem tem publicado os livros mais recentes do poeta Alberto Pimenta. Já publicou autores como o poeta inglês S. T. Coleridge em A Balada do Velho Marinheiro, ou Hans Magnus Enzensberger, o poeta alemão que é uma das vozes mais importantes da poesia atual. A Saguão desdobra-se depois em duas coleções; uma de livros de arte chamada “Sanguínea” e outra de ensaios chamada “Sagaz”, onde acaba de surgir uma reedição do belíssimo ensaio O Absoluto que Pertence à Terra, da filósofa Maria Filomena Molder, sobre a obra do escritor alemão Hermann Broch e o excêntrico romance de um autor italiano nunca traduzido em Portugal, Beppe Fenoglio. O livro Uma Questão Privada, apaixonou Italo Calvino que sobre ele escreveu:

“É um livro de paisagens, e é um livro de figuras rápidas e vivas, um livro de palavras precisas e verdadeiras. É um livro absurdo, misterioso, no qual aquilo que se persegue, persegue-se para se perseguir outra coisa, e esta outra coisa por se perseguir outra ainda, e não se chega nunca ao verdadeiro porquê.”

Estas edições têm tiragens de mil exemplares mas “só publicamos quando temos condições para isso, o que significa que podemos ficar um ano sem publicar. Este é um projeto editorial pequeno que quer continuar a ser pequeno, mas a fazer livros especiais. Também reeditamos os livros que esgotam porque queremos que continuem disponiveis no mercado, sem prazo de validade”, afirma a editora. Na discussão sobre o domínio que os grandes grupos têm do mercado, Mariana Pinto dos Santos considera que “tudo se resolveria se houvesse uma legislação clara, se houvesse vontade política de impedir a concentração editorial e proteger as pequenas editoras.  Mas gostaria de assinalar a persistência de editoras independentes de tamanho médio e pequeno num meio hostil, dominado por oligopólios. E a tristeza imensa pelo fim da Cotovia, editora de referência em todos os sentidos, no catálogo e na ética.”