A primeira vez que teve aulas de Ciências da Natureza, a cientista Fabíola Costa não se apaixonou pela área. Só quando entrou num laboratório, no sexto ano, quando tinha 11 anos, e começou a fazer experiências com cascas de cebola, descobrindo “os detalhes das células vegetais ao microscópio”, é que percebeu a vocação científica. Hoje, aos 41 anos, a coordenadora do projeto AntiBioCoat, do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, na cidade universitária do Porto, vive o sonho.

A investigadora desenvolveu um revestimento antimicrobiano feito a partir de um polímero, composto molecular que une várias células similares, produzido por uma bactéria marinha da costa de Zanzibar, na costa oriental do continente africano. E, graças a esta nova tecnologia de medicina preventiva, Fabíola Costa pode ajudar a acabar com as infecções por cateteres urinários [as sondas introduzidas até à bexiga, habitualmente conhecidas por algálias], que causam dor e sofrimento a milhares de pacientes internados em hospitais. Na Europa, estima-se que, a cada dia, cerca de oitenta mil doentes contraem uma infecção durante a assistência médica. A maioria está relacionada com a aplicação de cateteres.

O meu revestimento é como um filme que se aplica na superfície dos cateteres existentes, protegendo-os contra a aderência de microorganismos, e evitando assim o estabelecimento de infecção.”

Mas o caminho para a investigação não foi em linha reta. Fabíola licenciou-se em Ciências Farmacêuticas, no Porto, para “experimentar um bocadinho mais o que era isto de brincar aos investigadores”. Quando terminou o curso, receando que o sonho da investigação científica lhe pudesse trazer instabilidade financeira, foi trabalhar para uma farmácia. O apelo da investigação levou-a, depois, a fazer Mestrado em Microbiologia Aplicada. Quando terminou, acumulou três empregos: “numa farmácia, numa escola profissional e numa universidade privada”. Ficou triplamente desempregada quando estava grávida do primeiro filho. Pensou: “Se isto é que é carreira segura, então não vale a pena. Vou fazer aquilo de que mais gosto”.

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Nessa altura, “com o bebé no colo”, foi fazer o Doutoramento em Engenharia Biomédica. Especializou-se no desenvolvimento de revestimentos antimicrobianos sem recurso a antibióticos. Foi o i3S – o consórcio inovador na área de investigação científica em Saúde da Universidade do Porto, que reúne o Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), o Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB) e o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (Ipatimup), que lhe abriu as portas para apurar a investigação. Por isso, quando, em 2015, a colega e também investigadora Rita Mota lhe deu carta branca para fazer o que quisesse com o polímero da investigação que desenvolvera, a partir de cianobactérias isoladas, esta aveirense emocionou-se. Sentiu o mesmo entusiasmo com que, na infância, ia às grutas com um dos quatro irmãos caçar morcegos. “Até me arrepiei”, confessa a ex-escuteira, com os olhos azuis-esverdeados a brilhar.

Cerca de oitenta mil doentes na Europa contraem diariamente uma infecção durante a assistência médica hospitalar. A maioria está relacionada com a aplicação de cateteres. E é isso que o AntiBioCoat pretende evitar

Essa é, aliás, a mesma cor matizada da microalga do Oceano Índico responsável pelo revestimento antiaderente que a cientista desenvolveu. Os primeiros resultados foram tão bons que a cientista achou que se “tinha enganado.” É que antes de aplicar o polímero no desenvolvimento deste revestimento, os primeiros ensaios, para verificar potenciais atividades antifúngica ou antimicrobiana, foram completamente infrutíferos. Hoje o AntiBioCoat é um projeto de investigação do i3s constituído por equipas de dois Institutos, com o apoio para o negócio do departamento de transferência de tecnologia. Fabíola, do INEB, e Rita, do IBMC, são os pilares desta investigação inovadora. E, juntamente com as líderes de equipa dos respectivos departamentos a que pertencem, são as autoras da patente.

O cateter urinário é um dispositivo médico muito frequente e, tendo em conta que a nossa população está cada vez mais envelhecida, o seu uso vai aumentar”, diz a investigadora. “A nível dos pacientes vamos poupar muita dor graças ao AntibioCoat”.

O revestimento antimicrobiano vem revolucionar o mundo dos hospitais. Por um lado, tem potencial para diminuir a percentagem de infecção dos pacientes que usam cateteres urinários. Por outro, vai contribuir para que os hospitais possam economizar nas despesas com os pacientes. “Basta haver uma infecção do cateter urinário que a recuperação de um paciente, em termos de custos, pode aumentar muitíssimo”.

Se não fosse a pandemia de Covid-19, que forçou a paragem do projeto durante meses, a coordenadora do AntiBioCoat já teria “os dados finais in vivo”, que validam as evidências da viabilidade do projeto, quando fez a “prova de conceito em superfícies planas”. “Nós conseguimos passar de substratos planos, que era onde nós estávamos em 2018, quando nos candidatámos ao CaixaImpulse [ver informação em baixo], para um cateter completamente revestido, que vamos agora testar num modelo animal, para ser mimetizado, o máximo possível, com o que aconteceria numa situação humana”, explica. A investigadora está convicta que, “até ao final deste ano, início do próximo” já vai ter “dados muito concretos”. Depois, “os dados falam por si e é muito fácil fazer o pitch [para empresas]”, diz a cientista, motivada em promover o desenvolvimento de projetos científicos com potencial de negócio. “Cada vez faz mais sentido ter conversas com a sociedade e com pequenas indústrias, porque eu noto que há vontade de as empresas serem mais inovadoras e mais tecnológicas e não sabem bem por onde começar.” Ela acredita que o i3s, sendo “a fusão de três institutos”, pode fazer a diferença, aproximando o mundo empresarial e a ciência, ao serviço da sociedade.

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O Antibiocoat é um segredo bem guardado. A maior parte do trabalho de produção desta camada natural é feito pela cianobactéria Cyanothece. “Suspeitamos que o facto de ela produzir tanto polímero, está relacionado com um mecanismo de defesa de proteção de excesso de radiação solar.” No i3S, a cianobactéria vive num laboratório, onde é alimentada com água salgada e nutrientes que imitam as condições marítimas, com oxigenação e muita luz.

Para chegar a este revestimento de baixo custo, foram precisas muitas sinergias, sobretudo das áreas da biotecnologia, química e engenharia. Se a investigadora Rita Mota “não tivesse ficado tanto tempo a estudar essa cianobactéria marinha que era praticamente desconhecida, compreendendo como ela consegue multiplicar-se, não teria a investigação de base para poder trabalhar para a frente”. É por isso que a cientista ressalva que todas as fases de investigação são cruciais.

Cultura em laboratório da cianobactéria Cyanothece – alimentada com água salgada e nutrientes que imitam as condições marítimas, com oxigenação e muita luz –, produtora do polímero a partir do qual se faz o revestimento AntiBioCoat

“Quando entra em discussão se é mais importante Portugal financiar a investigação aplicada, ou a investigação básica, é inevitável apoiar as duas, porque só assim é que conseguimos ter um início, meio e um fim.” Depois de os ensaios em curso do AntiBioCoat para cateteres urinários serem validados, esta investigadora, que adora fazer trekking, acredita que o dispositivo médico com propriedades antiaderentes “pode ser interessante para aplicações muito diversas”, como “cateteres vasculares, a drenos, aos tubos endotraqueais”.

É por isso que, a partir da entrada no mercado deste revestimento natural antiaderente, se antecipe que a medicina preventiva abrace uma nova geração de equipamentos médicos, podendo reduzir, significativamente, as infecções hospitalares noutras áreas.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto AntiBioCoat – Anti-adhesiveBiopolymerCoating, liderado por Fabíola Costa, do Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB), integrado no consórcio i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, foi um dos vinte selecionados (dois em Portugal) – entre 85 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do programa Caixa Impulse. A investigadora recebeu 100 mil euros. O CaixaImpulse promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2021 abrem em fevereiro do próximo ano.