A associação PassMúsica, que representa artistas e produtores musicais e que é conhecida dos portugueses através de um símbolo que aparece em documentos afixados à entrada de estabelecimentos comerciais, afinal não está a cobrar indevidamente licenças a bares e discotecas sem atividade devido à covid-19. A garantia é da diretora executiva da PassMúsica, Sílvia de Sá, depois de a atuação desta entidade ter sido questionada no Facebook.

Na terça-feira, o empresário e músico Alberto Índio, proprietário do bar Hot Five, no Porto, escreveu naquela rede social que a PassMúsica “não perde tempo [a] enviar documentos de cobranças sob ameaça” apesar de saber que “os bares e discotecas estão encerrados por imposição do Governo”. Referia-se a um “aviso de pré-contencioso” que a PassMúsica lhe enviou a 5 de novembro e que ele reproduziu no Facebook.

[Publicação de Alberto Índio no Facebook]

https://www.facebook.com/hotfivejazzbluesclub/posts/10157000750842255

O bar em causa terá uma “dívida acumulada” de 494,55 euros, relativa a “direitos conexos pela utilização de fonograma” entre 1 de janeiro e 31 de dezembro deste ano, ou seja, por passar música ambiente quando está de porta aberta. Acontece que o Hot Five, tal como muitos ouros bares por todo o país, não tem clientes nem música — está fechado desde março, no contexto das decisões governamentais face à pandemia da covid-19. Também no Faceboook, mas a 19 de Outubro, Alberto Índio tinha escrito a seguinte frase: “Continuamos fechados à espera de respostas do governo. Primeiros a fechar e os últimos a abrir.” O Observador tentou falar com Alberto Índio, sem êxito.

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Questionada sobre o caso, a diretora executiva da PassMúsica explicou entretanto que o empresário contactou esta entidade já depois da publicação no Facebook e o assunto já está a ser tratado. A dívida em causa, segundo Sílvia de Sá, refere-se a 2020 mas a nota de cobrança foi enviada ao Hot Five em inícios de dezembro do ano passado, muito antes de a pandemia começar, pelo que a cobrança não perdeu validade.

O licenciamento de exibição de música em estabelecimentos comerciais, aliás obrigatório por lei, é sempre feito por antecipação: até ao fim do ano anterior àquele que diga respeito (havendo também a possibilidade de pagamentos de três em três meses ou de seis em seis, em todo o caso sempre antecipadamente face ao período licenciado).

Além disso, acrescentou Sílvia de Sá, a PassMúsica está a aplicar um desconto relativo ao período de 78 dias em que aos bares e discotecas obrigados a fechar. Isto é, de 15 de março (vésperas da entrada em vigor do primeiro Estado de Emergência) a 31 de maio (fim do Estado de Calamidade que se seguiu aos primeiros três Estados de Emergência). Daí os cerca de 21% de desconto que surgem na imagem partilhada pelo proprietário do Hot Five.

[Bar Hot Five documentou em fevereiro no Instagram uma atuação ao vivo]

https://www.instagram.com/p/B81a6fNlQZD/

Na versão da PassMúsica, todas as casas noturnas tiveram direito a este “mecanismo de solidariedade”, que se refletiu num “crédito excecional das tarifas pagas”, podendo os estabelecimentos abater os valores entretanto desembolsados (ou seja, aqueles que pagaram o ano de 2020 até 31 de dezembro de 2019 ou que já tinham o primeiro semestre em dia antes da chegada da covid-19).

“Mesmo os que estavam em situação de incumprimento têm direito ao crédito, como é o caso do Hot Five”, afirmou Sílvia de Sá. Perante o “aviso de pré-contencioso” que Alberto Índio partilhou no Facebook, disse a mesma responsável: “Não existindo qualquer registo de contactos telefónicos, e-mails ou cartas [por parte do empresário] a comunicar que o estabelecimento se mantém encerrado, é evidente a necessidade de envio de comunicações a alertar para o cancelamento dos benefícios anteriormente atribuídos e também para a existência de uma dívida”.

Inspeção-Geral não comenta

A PassMúsica foi criada em 2006 e representa artistas (através da Fundação GDA) e produtores musicais (através da associação Audiogest). É uma das Entidades de Gestão Coletiva do Direito do autor e Direitos Conexos, com tutela da Inspeção-Geral das Atividades Culturais, do Ministério da Cultura.

À Sociedade Portuguesa de Autores — outra das entidades reconhecidas pela IGAC — compete neste contexto a cobrança de direitos de autor das canções (que revertem para letristas e compositores), enquanto a PassMúsica cobra direitos conexos, ou seja, valores que cabem a intérpretes, executantes e produtores de música.

Os tarifários da PassMúsica oscilam entre um mínimo de 121,54 euros por ano (para um café com 100 lugares que difunde música ambiente) e um máximo de 2.667,95 euros por ano (para uma discoteca com lotação de 100 pessoas). Um escritório ou uma fábrica sem atendimento ao público onde esteja ligado um rádio também tem de pagar licença, por se considerar que ali existe uma “execução pública de fonogramas”. Neste caso, a tarifa anual vai dos 57 euros aos 134,50, conforme os metros quadrados ocupados.

Contactado, Luís Silveira Botelho, responsável máximo da IGAC, preferiu não se pronunciar sobre o caso. Transmitiu na quarta-feira ao Observador que não tinha “os elementos factuais que permitam a caracterização integral da situação”, mas pretendia “solicitar os esclarecimentos ajuizados necessários” junto da PassMúsica.

“Não ponho em causa a PassMúsica, critico a falta de transparência”

Nas últimas horas o Observador chegou à fala com vários proprietários de espaços noturnos de Lisboa e do Porto que, a propósito do caso Hot Five, acusaram aquela entidade de atitude agressiva nas cobranças, agora e no passado, de falta de diálogo e de discrepâncias nos valores cobrados a espaços com dimensões e atividades idênticas.

“O licenciamento custa-nos milhares de euros por ano, quando na verdade somos essencialmente um espaço de música ao vivo, o que está fora das licenças, e só temos música gravada, que paga licenças, durante 10 horas por semana, no máximo”, queixou-se a empresária Alexandra Vidal, do bar Damas, na zona da Graça, em Lisboa. “Existe uma grande arbitrariedade da PassMúsica na forma como faz os cálculos e não há nada na lei que a obrigue a explicar, segundo dizem os nossos advogados. Não ponho em causa a existência da PassMúsica, mas critico a falta de transparência e de empatia. Não paguei o primeiro trimestre, porque não me demonstraram como fazem os cálculos, e também não paguei o trimestre da pandemia, pelas mesmas razões”, acrescentou.

Desde a primeira vaga, o Damas não funciona como discoteca mas apenas como restaurante, com lotação para 69 pessoas e 16 empregados a contrato. Alexandra Vidal garantiu ter conhecimento, com documentos escritos, de um outro bar/discoteca de Lisboa com uma pista de dança sete dias por semana e lotação igual à do Damas que “em 2019 pagou à PassMúsica 2.800 euros, enquanto o Damas teve de desembolsar 2.573 euros”.

O Damas é um dos espaços noturnos com programação cultural e por isso integra, juntamente com quase três dezenas de casas, a recém-formada associação Circuito, que pretende defender os interesses do setor junto dos poderes públicos e reivindica um apoio a fundo perdido para bares e discotecas que não podem restabelecer a atividade. A Circuito deverá reunir-se com a PassMúsica nos próximos dias para abordar a questão das licenças, entre outros assuntos.

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Perante as críticas, Sílvia de Sá admitiu “uma certa imagem pouco positiva” da PassMúsica, “por ser uma entidade que faz cobranças, mas não tem força coerciva”, o que muitas vezes a leva a recorrer aos tribunais para obrigar os empresários ao pagamento das licenças. “Fazemos cerca de 27 mil licenciamentos por ano e infelizmente nem sempre é fácil termos um diálogo ajustado a cada um dos utilizadores”, reconheceu a diretora-executiva.