Quando era pequeno queria ser professor. Adorava a escola e imaginava-se do outro lado, a ensinar as disciplinas preferidas. Os pais achavam que estudava demasiado, mas, apesar de trabalhar bastante, parte do tempo passado à secretária era dedicado ao hobby que iniciou aos 11 anos e ainda hoje mantém: fazer estatísticas de atletismo internacional. E a verdade é que já na altura, como hoje, o estudo e o trabalho eram fontes de prazer e não de pesar.

Já era adolescente quando descobriu a ciência. “Descobri sobretudo que, além de se ensinar, a ciência faz-se. Comecei então a querer ser cientista”, explica o investigador de 46 anos, licenciado em bioquímica. Concretizou os dois desejos: é professor de Imunologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e lidera o seu próprio grupo de investigação no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM), do qual é também vice-diretor — e onde nos recebe no seu gabinete, com vista para o Hospital de Santa Maria.

Foi quando fez o doutoramento em Imunologia, no Cancer Research UK, em Londres, entre 1998 e 2002, que percebeu que queria aplicar a imunologia ao cancro. Mas não eram os melhores tempos para isso.

A palavra ‘imunoterapia’ era quase tabu, olhada com muita desconfiança. Ainda não estavam aprovados os tratamentos atuais. Mas eu tinha fé no sistema imunitário e sempre achei que chegaríamos a bom porto.”

E estamos a chegar. Apesar de ainda não ser o mais habitual, na última década foram aprovadas várias imunoterapias que são hoje a primeira linha de tratamento em alguns tipos de melanoma, carcinomas do pulmão e rim.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A premissa é simples: usar o nosso sistema imunitário para combater a doença. Mas a simplicidade da ideia esconde a complexidade do processo. Em primeiro lugar, porque nem todos os glóbulos brancos são capazes de combater os tumores, como combatem as infeções. “Apesar de termos células, em particular os linfócitos T, que são citotóxicos, isto é, têm capacidade de matar células tumorais, elas precisam de estar ativas para reconhecerem o tumor como algo estranho e o destruírem”, explica o investigador.

O projeto consegue lidar com o problema de rejeição celular usando um subtipo particular de linfócitos T, os gama-delta. São raros e capazes de uma proeza: olham apenas para o que cada ser humano tem de igual

Esta é uma batalha que começa por ser silenciosa. Quando um tumor se forma, essa massa descontrolada começa, tipicamente, a ser destruída pelo sistema imunitário. Mas, como em todas as batalhas, a vitória nunca está garantida. “Por vezes, chega-se a um ponto em que a resposta imunitária fica exausta e, além disso, o tumor tem mecanismos para subverter esta vigilância imunitária”, esclarece Bruno Silva-Santos.

Quando uma pessoa é diagnosticada com cancro, quer dizer que o tumor ganhou a batalha. E o propósito da imunoterapia é reverter este processo: começando de um ponto em que o paciente está claramente a perder batalhas, fazê-lo ganhar a guerra. Para isso, temos de dar algo que revigore o sistema imunitário.”

Esse algo são linfócitos T, mas não apenas os linfócitos T: um doente com cancro tem muitos, mas eles não estão a responder eficazmente ao avanço do tumor e precisam de ajuda. E é essa ajuda que a imunoterapia lhes pretende dar e, em alguns casos, já dá. Acontece que as terapias que já existem com células T – chamadas CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cells) — são imunoterapia autóloga, ou seja, cada tratamento é personalizado, utilizando as próprias células do paciente, depois de modificadas geneticamente (para se tornarem mais eficazes contra o cancro). Mas o facto de o tratamento ser individualizado tem muitas limitações.

É aqui que se distingue o projeto liderado por Bruno Silva-Santos, financiado ao abrigo do concurso Health Research, da Fundação “La Caixa” [ver informação em baixo]. O investigador está a tentar desenvolver uma imunoterapia universal, ou seja, que possa ser dada a todas as pessoas com um determinado tipo de cancro, sendo que estão a começar pela mais agressiva de todas as leucemias, a mieloide aguda (LMA). A ideia é que todos os doentes possam receber o mesmo produto de linfócitos T, feito a partir de células de um dador saudável, que está imediatamente disponível, não precisando de ser feito especialmente para cada doente. “E isto é uma enorme conquista porque nós, naturalmente, rejeitamos as células uns dos outros, sendo essa uma das limitações, por exemplo, ao transplante de órgãos. A alo-rejeição – a rejeição do que nos é estranho – faz com que seja muito difícil transferirmos células entre pessoas.”

4 fotos

Este projeto consegue lidar com este problema usando um subtipo particular de linfócitos T, os gama-delta (γδ). São raros – apenas 1 a 5 % do total de linfócitos T que temos –, mas são capazes de uma proeza que chega a ser poética: olham apenas para o que cada ser humano tem de igual. “A maioria dos linfócitos T é sensível às diferenças entre pessoas. Os gama-delta não veem as diferenças, mas apenas o que é igual. Por isso, podem ser dados a toda a gente. E, no organismo, eles só reagem a células infetadas ou anormais, como é o caso das cancerígenas”

A equipa tem em marcha a produção de grandes quantidades destes linfócitos T gama-delta. “As células são selecionadas em laboratório para terem boas propriedades antitumorais e, durante duas semanas, são cultivadas usando uma ‘receita especial’ – resultado de quatro anos de pesquisa – que as estimula, faz proliferar e ficar mais ativas.” Uma espécie de treino para as tornar melhores ‘matadoras’. Este projeto propõe associar a este processo de expansão a modificação genética das células CAR-T, produzindo assim linfócitos “super-eficazes” e “universais” para o tratamento da leucemia.

Bruno Silva-Santos e a sua equipa estão a tentar desenvolver uma imunoterapia universal, que possa ser administrada a todas as pessoas com um determinado tipo de cancro. Estão a começar pela mais agressiva das leucemias, a mieloide aguda

“O nosso objetivo com este projeto é precisamente preparar um dossier para que as agências regulamentares autorizem um ensaio clínico destas células em doentes com leucemia mieloide aguda.” Por enquanto, estão a ser testadas apenas em ratinhos, mas, se tudo correr bem, dentro de três anos, serão iniciados testes em humanos.

E isto, basicamente, pode ser uma revolução no tratamento de alguns tipos de cancro.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “La Caixa” e o BPI. O projeto Next-GenerationCAR-DOTCells for AllogeneicAdoptiveCancerImmunotherapy / Podemos Criar uma Imunoterapia Universal para Combater o Cancro?, liderado por Bruno Silva-Santos, do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, foi um dos 25 selecionados (seis em Portugal) – entre 632 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2019 do Concurso HealthResearch. O investigador recebeu cerca de um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O HealthResearch apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 estão abertas até 3 de dezembro.