Os líderes europeus estiveram esta quinta-feira reunidos várias horas num Conselho Europeu em que a resposta à Covid-19 foi o tema central, com os 27 Estados-membros a defenderem a necessidade de acelerar o processo de vacinação numa altura em que muitos países enfrentam uma terceira vaga da pandemia, agravada pelo atraso na entrega das doses da vacina acordadas com as farmacêuticas. O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, foi o convidado especial de uma cimeira por videoconferência que terá ainda na agenda a discussão sobre as relações com a Rússia e a Turquia.

Na carta que enviou aos 27 Chefes de Estado e de Governo da União, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, sublinhou que a “principal prioridade é acelerar as campanhas de vacinação em toda a UE”, defendendo a necessidade de intensificar a produção de vacinas, maior velocidade no processo de distribuição e “assegurar a transparência e previsibilidade na cadeia de abastecimento”.

Um dos pontos que mais gerava expetativa nesta reunião do Conselho Europeu era a discussão da proposta apresentada pela Comissão Europeia para reforçar o mecanismo para bloquear a exportação de vacinas, introduzindo os princípios de reciprocidade e proporcionalidade, numa altura em que, comparativamente ao Reino Unido e aos Estados Unidos, a União Europeia está bastante atrasada no processo de vacinação — de acordo com os número do Our World in Data, o Reino Unido já administrou cerca de 46 doses por cada 100 habitantes, enquanto a UE se fica pelas 13.8 doses por cada 100 habitantes.

No entanto, de acordo com o The Guardian, Países Baixos, Irlanda, Suécia e Bélgica são alguns dos países que se opõem a alterações nas medidas de regulação, enquanto a Alemanha, pela voz da chanceler Angela Merkel, sublinhou que a prioridade da União Europeia deve ser o aumento da produção em solo europeu. A Itália, por seu turno, tem pressionado para que Bruxelas tome medidas mais duras para garantir que as vacinas ficam em território europeu.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Bruxelas reforça mecanismo de autorização para exportação de vacinas

Nesse sentido, e tendo presente que a proposta da Comissão apenas foi apresentada na quarta-feira, era expectável que os líderes europeus hesitassem quanto a tomar mais medidas drásticas, nomeadamente no que diz respeito ao princípio de reciprocidade, sendo por isso expectável que os países recusassem, para já, usar os poderes adicionais para bloquear a exportação de vacinas para outros países, nomeadamente o Reino Unido. E foi o que aconteceu.

Num rascunho das declarações finais dos líderes europeus, citado pela AFP , lê-se que os Estados-membros reiteram a “importância da transparência e do uso de autorizações de exportações”, reafirmando que as “empresas [farmacêuticas] devem garantir a previsibilidade da sua produção de vacinas e respeitar os prazos contratuais de entrega”, declarações vagas que não demonstram um apoio claro ao mecanismo proposto pela Comissão.

A possibilidade de Bruxelas vir a bloquear a exportação de vacinas, no entanto, fez aumentar a tensão, temendo-se que tal pudesse levar a retaliações por parte do governo britânico e a disrupções no mercado. Nesse sentido, depois de a Comissão Europeia anunciar o novo mecanismo de exportação, Londres e Bruxelas assinaram uma declaração conjunta em que se comprometem em fazer os possíveis para “assegurar uma relação recíproca e benéfica” que permita “aumentar o fornecimento de vacinas para todos os cidadãos”.

Com poucas vacinas para os europeus, a UE exportou 34 milhões de doses em seis semanas. Porquê?

Bruxelas tem responsabilizado as farmacêuticas — particularmente a AstraZeneca — pelo atraso no processo de vacinação na Europa, uma vez que a entrega das doses acordadas não está a ser cumprida, o que tem prejudicado os países europeus que estão dependentes dessas vacinas. Por outro lado, desde dezembro, a União Europeia já exportou mais de 77 milhões de doses de vacinas para 33 países, sendo que 21 milhões dessas doses (um milhão da AstraZeneca, as restantes da Pfizer), segundo o Guardian, destinaram-se ao Reino Unido, enquanto em sentido inverso não chegaram quaisquer doses.

Ao apresentar a proposta para reforçar o mecanismo de exportação de vacinas, a Comissão Europeia sublinhou que “ainda não foi atingido o objetivo de assegurar atempadamente vacinas contra a Covid-19 para os cidadãos da UE”, daí a necessidade de tomar medidas mais duras. No entanto, os 27 Estados-membros querem evitar uma guerra de vacinas com o Reino Unido, e a proposta da Comissão deve ser encarada mais como um meio ao seu dispor para pressionar outros países e as farmacêuticas.

Apenas 4,1% dos europeus receberam as duas doses da vacina

Pouco antes do início da reunião do Conselho Europeu, Ursula von der Leyen recorreu ao Twitter para revelar os últimos dados da vacinação na União Europeia, revelando que, até agora, foram entregues 88 milhões de doses da vacina contra a Covid-19, tendo sido administradas 62 milhões dessas doses, tendo 18,2 milhões de europeus (4,1% da população dos 27 Estados-membros) recebido a segunda dose da vacina.

Juntamente com a divulgação destes dados, a presidente da Comissão Europeia garantiu que os europeus vão receber a sua “quota-parte justa de vacinas”. Para o segundo trimestre do ano, a UE espera receber 360 milhões de doses da vacina contra a Covid-19.

Já o presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, que esteve no início da reunião do Conselho Europeu, pediu aos líderes europeus para não serem “ingénuos” e para agirem com determinação para proteger o abastecimento de vacinas no espaço europeu, saindo em defesa do mecanismo de exportação apresentado pela Comissão.

“Está na altura de aplicarmos os princípios de reciprocidade e proporcionalidade antes de dar luz verde europeia às exportações”, defendeu Sassol, apelando ainda à união de todos os Estados-membros num momento de grande dificuldade para todos os países europeus.

“Não faz sentido que nos voltemos uns contra outros, assim como não faz sentido pensar que outros se estejam a sair melhor”, disse Sassoli. “Quanto mais unidade mostrarmos, mais confiança inspiraremos”, afirmou Sassoli.

Áustria alerta para discrepâncias na vacinação dentro do bloco europeu

As afirmações do presidente do Parlamento Europeu parecem ter em conta as queixas apresentadas pelo chanceler austríaco, Sebastian Kurz, que chamou a atenção para as discrepâncias na vacinação dentro dos Estados-membros, sublinhando que as vacinas não estão a ser distribuídas de forma proporcional, o que pode ter consequências para a coesão da União.

“Se não for encontrada nenhuma solução, isso pode causar danos na União Europeia como não víamos há muito tempo”, alertou Kurz, citado pela Reuters, numa conferência de imprensa antes do início da reunião dos líderes europeus.

De acordo com os números da Reuters, 13,4% dos austríacos já receberam a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Em Malta, por exemplo, a percentagem sobe para os 21,5%, enquanto na Bulgária desce drasticamente para 5,2%. Na União Europeia, a nível global, 10% dos adultos já receberam a primeira dose.

Um dos momentos de tensão durante a reunião, escreve o Financial Times, deu-se precisamente quando Sebastian Kurz confrontou os seus homólogos europeus sobre a distribuição das dez milhões de doses extra da Pfizer/BioNTech que a União Europeia vai receber, tendo inclusive ameaçado vetar uma distribuição que não beneficie a Áustria.

Kurz defendeu que parte essas doses deveriam ser distribuídas em maior número pelos países mais prejudicados pelo atraso na entrega das vacinas da AstraZeneca, entre eles a Áustria, o que levou a uma reprimenda por parte de Angela Merkel, que terá questionado a necessidade de o país receber mais doses nesta fase, quando tem uma média de 14,6 doses administradas por cada 100 habitantes (na UE é 13,6 por cada 100 habitantes) e existem países mais prejudicados pelo atraso nas entregas.

Antes da reunião, perante os deputados alemães, Merkel já tinha insistido na necessidade de a União Europeia estar unida para conseguir vacinas para todos os Estados-membros, defendendo a estratégia de centralização da compra de vacinas através da Comissão Europeia.

“Não gostaria de imaginar o que aconteceria, se alguns países tivessem vacinas e outros não. Isso abalaria a base do nosso mercado interno”, disse Merkel perante os deputados alemães, antes da reunião do Conselho Europeu, depois de o Presidente francês, Emmanuel Macron, ter admitido que “faltou ambição” aos europeus para garantir vacinas.

Na discussão dos líderes europeus sobre a pandemia de Covid-19, estará também em cima da mesa o passaporte de vacinação, denominado de Certificado Verde Digital, que será uma das prioridades da presidência portuguesa.

Participação de Joe Biden na cimeira

Em termos de política externa, os líderes europeus debruçaram-se sobre as relações da União com a Turquia e a Rússia. Em relação a Ancara, é expectável que tenham sido dados os primeiros passos quanto ao rumo que as relações diplomáticas vão seguir nos próximos meses, depois da tensão do último verão quanto às pretensões da Turquia no Mediterrâneo oriental.

Os Estados-membros manifestaram disponibilidade para aprofundar as relações comerciais com a Turquia, não fechando, contudo, a porta à imposição de sanções caso a Turquia recomeçar a exploração de hidrocarbonetos no Mediterrâneo oriental.

Quanto à Rússia, Charles Michel disse que iria por os líderes europeus a par da conversa telefónica que teve com o Presidente russo, Vladimir Putin, na passada segunda-feira.

Joe Biden vai juntar-se a líderes da UE em cimeira virtual para discutir a pandemia

As relações entre Bruxelas e Moscovo agravaram-se nos últimos meses, sobretudo após a detenção e condenação de Alexei Navalny, condenado a dois anos e meses de prisão. A União Europeia tem apelado à libertação do opositor russo, enquanto a Rússia acusa os europeus de estarem a interferir em questões internas do país.

No entanto, conforme adiantou o presidente do Conselho Europeu, o “debate mais estratégico” em relação à forma de lidar com a Rússia ficará para a próxima cimeira dos líderes europeus, com Charles Michel a preferir discutir o problema de forma mais concreta presencialmente.

Por fim, nesta quinta-feira, por volta das 20h45 em Bruxelas (menos uma hora em Portugal Continental), o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, participou por videoconferência na reunião do Conselho Europeu,reforçando assim a importância da relação transatlântica. Numa intervenção simbólica, terão sido abordadas preocupações comuns de Washington e Bruxelas, não só no combate à pandemia.

A reunião do Conselho Europeu deveria prosseguir na sexta-feira, 26 de março, no entanto Charles Michel decidiu antecipar a discussão dos temas da transição digital e agenda económica, bem como a Cimeira do Euro sobre o papel internacional da moeda única europeia, para esta quinta-feira.