Atualizado às 10h40 de terça-feira.

“Disparates, asneiras, insensibilidade social”. É difícil imaginar um discurso mais duro de um político em funções executivas contra uma empresa.  Os qualificativos foram usados pelo primeiro-ministro a propósito de uma decisão que tem já nove meses tomada uma empresa da qual o Estado é ainda acionista, embora sem intervir na gestão.

António Costa falava na pele de líder do PS em contexto de campanha autárquica e em apoio da autarca socialista que teve de enfrentar a bomba do fecho da refinaria de Matosinhos, anunciado no final do ano passado. E isso ajuda a perceber a agressividade de frases como: “Era difícil de imaginar tanto disparate, tantas asneiras, insensibilidade, e falta de solidariedade como aquela que a Galp deu prova aqui em Matosinhos”.

Mesmo afirmando não ter nada contra a empresa — da qual até o Estado tem recebido dividendos mesmo em ano de resultado negativo pelos 7% que controla — António Costa sublinhou que o processo de desmantelamento da refinaria deve ser exemplar e deixando no ar uma ideia em tom de ameaça: “Quem se porta assim tem de levar uma lição”.

O Governo nunca se mostrou contra a decisão da Galp de fechar a refinaria de Matosinhos, que é justificada pelo quadro da transição energética, tendo aliás a primeira reação pública do Ministério do Ambiente ressalvado que se trata de uma “decisão de uma empresa privada”.

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Mas afinal porque se mostrou tão revoltado António Costa? Descontando o tom inflamado da campanha política, o líder do PS apontou três argumentos. Todos válidos e que já tinham sido manifestadas por membros do Governo e da autarquia, ainda que em tom mais moderado. Mas o tempo que demorou a manifestá-los e distância entre as posições de líder de Governo e do PS justificaram grande parte das críticas que recebeu.

Total insensibilidade da empresa ao escolher o dia 20 de dezembro, quase em cima do Natal, para anunciar o encerramento da refinaria aos trabalhadores.

António Costa retoma uma crítica já feita pelo seu ministro do Ambiente, Matos Fernandes, e cujo timing nunca foi claramente explicado pela empresa. A Galp suspendeu produção em Matosinhos em outubro de 2020, pela segunda vez esse ano por causa da pandemia e da queda de procura. Mas a empresa na altura invocou a necessidade de reajustamento operacional ao mercado. A comissão de trabalhadores já teria sido avisada que estava a ser estudada a viabilidade da refinaria e em dezembro é anunciado o fecho. Uma decisão “complexa e muito difícil que ocorre após muita ponderação, mas tornando-se inevitável em face da ausência de resiliência e sustentabilidade no contexto em que estamos inseridos”

Galp fecha refinaria em Matosinhos a partir de 2021. Decisão afecta 400 trabalhadores diretamente, mas impacto pode ser maior

A empresa não revelou os estudos que fez para sustentar a decisão, mas indicou que o fecho ia reduzir os custos anuais em 90 milhões de euros — apesar do encerramento custar pelo menos 200 milhões de euros. O anúncio foi feito com Carlos Gomes da Silva na presidência executiva, mas o CEO não chegou a justificar publicamente a opção. Foi substituído um mês depois e quem acabou por ir ao Parlamento e a Matosinhos explicar o encerramento foi o então administrador da Galp com o pelouro da refinação, José Carlos Silva.

Total irresponsabilidade social porque não preparou minimamente a requalificação e as novas oportunidades de trabalho para quem ia perder o emprego por causa da transição energética.

O processo de negociação com os trabalhadores da Petrogal afetados só começou após o anúncio de encerramento. A medida afetou 400 postos de trabalho diretos. Na semana passada foi o último dia de trabalho para 14o funcionários que estão para já abrangidos por um processo de despedimento coletivo. Segundo o Ministério do Trabalho, citado pelo Jornal Público, o IEFP e a Direção Geral do Emprego e Relações do Trabalho propuseram em junho que a empresa continuasse a pagar os salários a estes trabalhadores enquanto recebiam ações de formação profissional financiadas pelas entidades públicas, mas empresa recusou. A Galp ainda não comentou esta informação, nem respondeu a perguntas enviadas pelo Observador sobre o processo de encerramento da refinaria de Matosinhos.

Refinaria de Matosinhos. IEFP sugeriu formação para trabalhadores continuarem a receber ordenado. Empresa recusou

Até chegar aos 140 trabalhadores abrangidos pelo despedimento coletivo, a Petrogal realizou conversas individuais, tendo encontrado soluções para cerca de 40% dos colaboradores, incluindo a manutenção de mais de 110 quer nas operações do parque logístico que se manterá em funções, quer no âmbito de mobilidades internas para outras atividades do Grupo.

Em relação ao futuro do espaço, a Galp já anunciou que o site continuará a ser utilizado como hub logístico para garantia do abastecimento do Norte do País e que está a analisar outras possibilidades, com contributo adicional para a criação de novos postos de trabalho e que a seu tempo serão objeto de decisão e divulgação em articulação com autoridades.

Não revelou a menos consciência de responsabilidade que qualquer empresa tem com o território em que se instala, não dialogando previamente com a câmara e o Estado sobre o que pretende fazer depois de encerrar a refinaria.

A decisão de fechar a refinaria foi tomada na reunião de conselho de administração que ocorreu na véspera do anúncio público, mas sabe-se que a Galp como é de praxe a comunicou previamente, ainda que sem grande antecipação, ao Governo e à autarquia. No primeiro caso, e ao contrário por exemplo da central a carvão que a EDP fechou, a Galp não precisa de uma autorização administrativa para encerrar a refinaria. Terá naturalmente de assegurar que as condições de segurança de abastecimento ao país estão garantidas, o que aliás foi realçado no comunicado do Ministério do Ambiente e Ação Climática.

“Não daremos um tostão” do fundo europeu. Galp será responsável por descontaminar área da refinaria de Matosinhos

Mas há dúvidas sobre o futuro dos terrenos onde está a refinaria e eventuais usos industriais que venham a ser desenvolvidos. E aí a autarquia terá uma palavra decisiva. O projeto sucessor será elegível para receber verbas do fundo europeu para a transição energética, mas é preciso que a Galp, o Governo e a autarquia se entendam sobre os contornos de uma candidatura.

A autarca de Matosinhos, Luís Salgueiro, já avisou que não permitirá uma atividade com impacto ambiental negativo e mostou-se também contrária à exploração imobiliária dos terrenos em frente ao mar. O ministro do Ambiente também alertou a empresa de que não pense em usar as verbas europeias para pagar a descontaminação dos solos cuja fatura deve ser suportada pela Galp.

Câmara de Matosinhos quer parcela de terrenos da refinaria da Galp, desativada em abril, para uso público

A Câmara de Matosinhos informou entretanto que pretende reivindicar uma parcela dos terrenos que vão ser libertados para instalar um centro tecnológico da Energia e do Mar. A Galp anunciou a criação de um grupo de trabalho para estudar a criação de uma plataforma para endereçar os desafios da transição energética em Matosinhos. Este grupo terá a coordenação de Rodrigo Tavares, e integra quadros da Galp, peritos nacionais e internacionais – como Ana Lehmann, Adélio Mendes ou Falk Uebernickel – , e prevê a colaboração de stakeholders de âmbito local, nacional e internacional. Não há calendário para apresentar conclusões.

Do silêncio da Galp às acusações de mentira e cinismo, passando pela “estupefação e indignação”

Apesar do silêncio da principal visada — a Galp não comenta — as reações às declarações de António Costa não tardaram,   E os que estão a favor ou contra uma intervenção do Governo neste processo estiveram alinhados na crítica ao primeiro-ministro.

Rui Rio citou António Costa em duas ocasiões para dizer que o secretário-geral do PS no domingo desmentiu o que o primeiro-ministro tinha afirmado em maio: “Neste concelho acaba de encerrar uma refinaria, foi um enorme ganho para a redução de emissões’. Para o líder do PSD, as coisas “atingiram um patamar inadmissível” em Matosinhos. “Quando um homem experiente como ele mente de forma tão descarada no mesmo sítio e no espaço de 4 meses”, só pode significar que acha que as eleições lhe podem correr mal.

Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, atacou o “exercício de cinismo” do primeiro-ministro, lembrando que o Governo e o PS recusaram a proposta feita no ano passado pelo Partido no quadro das negociações do Orçamento do Estado para aprovar legislação para impedir despedimentos por parte de empresas com lucros — por acaso a Galp até teve prejuízos em 2020, mas distribuiu dividendos em 2021. Esta proposta caiu na negociação, aceitando o Governo penalizar as empresas que despedissem no quadro da atribuições de apoios públicos.

Catarina Martins acusa Costa de “exercício de cinismo” sobre a Galp

“O que pensará um trabalhador da refinaria da Galp quando houve a mesma pessoa que impediu qualquer mudança que protegesse o seu emprego, uma vez despedido, dizer que aquilo que não podia acontecido? A política não pode ser esse exercício de cinismo, a política tem de ser sobre soluções para a vida das pessoas”, afirmou Catarina Martins.

E os representantes dos trabalhadores não tardaram a dizer o que pensavam desta reprimenda pública tardia do primeiro-ministro. “Estupefação, indignação e até esperança”, foram expressões usadas pela Comissão de Trabalhadores da Petrogal, empresa da Galp dona da refinaria de Matosinhos. As duas primeiras porque “passaram oito meses desde que nós dizemos que o primeiro-ministro devia pronunciar-se, devia assumir uma posição em defesa da refinaria do Porto e dos postos de trabalho que ali foram destruídos”. Esperança porque “vale mais tarde do nunca”, afirmou o coordenador Hélder Guerreira, citado pela Lusa.

CT da Petrogal vê declarações de Costa com “estupefação”, “indignação” e “esperança”

Já o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, lembrou declarações de Costa em maio quando usou o fecho da refinaria como exemplo dos desafios da transição energética e criticou o tom de “papão de empresários” usado nos ataques à Galp.