Foi na Calçada do Ferragial, número oito. Ploc. Ploc. Prrrrrr…ploc. Minigolfe é polo, Lourenço, minigolfe é polo, dizia ela a rir-se, a única coisa que dizia (a combinação era essa, jogar sem conversar), minigolfe é polo, sempre que metia a bola laranja dentro do copo de alumínio de fruta em refeitório em menos tacadas do que eu prrrrrr….ploc, que foi quase sempre, porque cada vez vejo pior (não faço a medicação completa, seca-me as mucosas), e o minigolfe que tinha jogado em Lourenço Marques (atual Maputo) já o tinha desaprendido, e a idade, a bem da verdade, ao contrário do que achava, não me tem tornado um ás das coisas mais em jeito do que em força, bem pelo contrário até, sim, mesmo nessas, se calhar por não fazer a medicação completa (já tinha dito, não já?). Seria polo a cavalo ou em elefante? Será que ela achava que eu vinha de botas de montar?

Dizem que o minigolfe foi inventado para entreter as viúvas do golfe enquanto os maridos passeavam as barrigas horas sem fio pela passadeira verde da alcatifa dos crescidos. A viuvez dentro do casamento, fenómeno atual, relativamente frequente, não sem mistério e tão pouco falado (em tudo idêntico ao fenómeno do próprio sexo dentro do casamento), é um dos maiores motores da história, isso já se sabe, mas confesso que nunca tinha ligado minigolfe a mais uma péssima ideia do patriarcado. Ao contrário do padel, que serve para engatar o colega do escritório e recuperar do trauma de nunca se ter conseguido jogar bem ténis, o minigolfe não tem nada a ver com eros nem com golfe. É só uma péssima ideia. E para quem como eu adora péssimas ideias, não há nada pior do que uma péssima ideia mal executada.

Já não via esta amiga há muito tempo, ou faz tempo como dizem em brasileiro, e eu fico sempre sem saber se faz muito tempo, pouco tempo ou médio tempo. Ora essa amiga, por razões que não importam ao caso, tinha nos idos dias em que éramos visita de casa, uma tendência, que mantém, para apenas se encontrar comigo (e suponho que com quem seja que se encontre, que isto dos exclusivos numa economia de mercado é cada vez mais complicado por causa das autoridades da concorrência) em locais pouco habituais, sempre a mania dos segredos, dos esconderijos e surpresas (e não é por causa do marido, são coisas dela), e desta última vez calhou-me um minigolfe, o novo minigolfe da Calçada do Ferragial número oito, quem desce do lado esquerdo mesmo antes de umas bonitas escadinhas que são a trave do tê da Travessa também do Ferragial. Queria só devolver-me umas coisas, e não era para conversas (a nossa amizade nunca recuperou de um maxigolpe, um elefante de polo numa sala de minigolfe da nossa relação), disse-me quando me ligou de um número anónimo, ou privado, ou desconhecido, tem sempre regras, e eu cumpro, normalmente faço o que me dizem e não é agora que vou começar a fazer diferente.

© Minigolf Lisbon

Tal como ela, minigolfe é, além de uma péssima ideia, um conceito, coisa impossível e impossuível, sobretudo neste novo sítio, que é um minigolfe de paródia ao minigolfe. E já se sabe que não se brinca com coisas parvas. São dezoito buracos, como no golfe dos crescidos, repartidos por dois andares, como nas casas dos tios crescidos, umas coisas no andar de cima, outras no andar de baixo. Um campo de minigolfe que parece montado num cenário de um programa muitafixebuédabom para jovens, do início dos anos 90, na RTP, canal um ou canal dois não importa, domingo depois do almoço. É tudo óbvio, quase excessivo, timidamente caricatural. As paredes demonstram irreverência, então estão pintadas num grafichê, que é um clichê de grafiti (a alternativa, clitti, não era alternativa semântica), na sala de cima, o império do fluorescente, tudo brilha como se tivéssemos saído de um caldeirão de Fukushima (os tempos não estão para analogias com outros desastres nucleares ocorridos mais perto de nós, na década de oitenta). Há quem ache bonito? Pode ser que haja, também há quem goste do Dubai. Por falar em desertos, há mais de vinte anos fui arrastado para um minigolfe nudista no festival Burning Man, tudo pago por uma das maiores empresas de níquel do mundo, hoje talvez essa escapada desértica fosse considerada desética, mas havia tendas, bilhetes e vontade, e quando há tendas, bilhetes e vontade não se pode obrigar um homem a continuar vestido numa conferência chata sobre o mercado mundial de certos metais.

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No desenho-animado do Ferragial, enquanto eu perdia obstáculo atrás de obstáculo (é uma coisa que me acontece com crescente regularidade, até porque regularidade termina em idade), tentava perceber quem seriam aquelas pessoas, grupos de amigas, casais, muitos casais, estrangeiros (que pagam o dobro dos residentes, uma minigolpada tipo Castelo de São Jorge). Não se percebe muito bem o público-papalvo do conceito: quem lá irá uma segunda vez na vida? O álcool demasiado caro – imperial quatro euros – para atrair quem vá pelo beber, tudo tão feio que não será pelo ver. Pelo jogar? Mas alguém joga minigolfe pelo jogar? Se sim, rumará ao Inatel, com as suas pistas solenes, nobres, desmaiadas, não penso que volte ali, para dentro de quatro paredes, ou oito, porque são dois andares (eles repetem muito duas pistas em dois andares, deve estar no briefing do storytelling, até porque eram ali os Story Tailors, ou no programa, como se dizia antes — fui casado com uma publicitária, um dia conto).

© Minigolf Lisbon

Enquanto recuperava de não ter conseguido acertar com o túnel que levava ao prrrrrr do copo de inox da salada de frutas (que podia ser da Cantina das Freiras, costas com costas com o minigolfe), eureka, percebi a quem se dirige toda aquela falta de sentido: turistas em casal no dia quatro da viagem, ou seja, casais de turistas pacificados que, já tendo esgotado os poucos museus de Lisboa, ultrapassaram os dois dias de ressentimento mútuo que se seguem à constatação, normalmente ocorrida entre o dia um e o dia dois, de que não é por terem vindo para Lisboa que vão ter mais ou melhor sexo do que lá no apartamento deles em Hanover. E foi aí que me lembrei, a memória falha-me muito agora, por que tinha ela escolhido o raio do minigolfe. Tinha sido, muitos anos antes, no Meliá Salinas, em Lanzarote, resort desenhado pelo Fernando Higueras, um dos edifícios mais belos do mundo, que ela tinha insistido que tínhamos de sair do quarto para jogar minigolfe. A referência esteve sempre lá, mas a tempestade estética do minigolfe do Ferragial não a deixava vir.

Quando saímos, eu cansado e desanimado, ela fresca, tudo aquilo demasiado asséptico para salão de jogos, demasiado apalhaçado para bar, ela ainda se virou do cimo da rua e disse, com cara de tacada final, minigolfe é polo, minigolfe é polo, Lourenço. E antes que lhe pudesse responder, mantinha o passo de gazela, lembrei-me do VW Polo que tinha quando nos conhecemos a que chamávamos, não me recordo se ela, se eu, se os dois, o mini Golf.

Lourenço Viegas é geólogo aposentado, tem duas filhas, três netos, quatro casamentos e qualquer dia um funeral porque já passa dos setenta e nem sempre faz a medicação completa. Nasceu em Lourenço Marques, vive no Ribatejo e durante a troika viveu no estrangeiro. Quando já só pensava noutras coisas, voltaram a pedir-lhe para escrever sobre estas coisas para o Experimentador Implacável.