As expressões não enganam, bastava olhar para a de Pacman que parecia incapaz de lhe deixar o rosto: língua de fora, olhos reluzentes, sorriso rasgado na cara de quem durante hora e meia voltou a ser um puto feliz de Almada com o coração do país aos pés.

É claro que havia indícios de que seria assim: um dia esgotado pela corrida aos bilhetes, as mensagens e o entusiasmo transmitidas diariamente por quem não esquecia a “doninha” e as lembranças de concertos lotados. Mas não custa imaginar que lá de cima, do imponente palco principal do NOS Alive, a impressão fosse realmente nova: em 2022, milhares de braços vibrantes bem erguidos nos céus para os celebrar? Imaginar é uma coisa, confirmar que se foi a banda de uma era no país é outra conversa.

O regresso dos Da Weasel para um concerto no festival do Passeio Marítimo de Algés assemelhou-se a um velho reencontro de amigos há muito separados — dos seis da formação final da banda, claro, mas também de Pacman, “Jay Jay”, Virgul, Quaresma (“Quakas”), DJ Glue e Guilherme Silva (“Guillaz”) com as multidões devotas que, quando a banda acabou repentinamente numa das suas fases mais áureas, os ouviam religiosamente. E uma reunião feliz, porque se dúvidas existiam sobre a “performance” ao vivo desta trupe mais de dez anos depois dos seus últimos concertos em banda, desfizeram-se todas.

Ao longo do dia, pelo recinto, percebia-se que o sábado seria deles (como se já não fosse evidente), a cada meia dúzia de metros percorridos uma t-shirt preta com o símbolo daquele que foi, em simultâneo, o maior grupo português de hip-hop e um dos maiores do rock (porque os Xutos & Pontapés impõem respeito).

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O concerto começou ligeirissimamente antes do previsto, 20h59 no ponteiro e a multidão a rebentar de histerismo quando Carlão surgiu em palco e nos ecrãs. Só faltavam as dreadlocks, a energia era exatamente a dos 2000s e a de “Loja (canção do carocho)”, tema que os Da Weasel não quiseram deixar de fora do alinhamento — e que, servindo de arranque, funcionou quase como uma lembrança de que a “doninha” dos singles cantados dos oito aos 80 era também a “doninha” sem amarras de comportamento, que em plena época de platina (de Re-Definições), tinha canções em que se falava de “mamadas”, do “filho da puta do carocho”, de “gente a comprar” e de “gente a vender”.

Depois de “A Essência (Vem Sentir)”, o alinhamento passou por “Força (Uma Página de História)”, Carlão a rimar como se fosse uma versão atualizada do Pacman de 2004, DJ Glue a fazer scratch com um talento que tem de silenciar todos os que duvidaram de uma formação de Da Weasel com DJ. “Custou mas foi, porra”, diria o MC, parecendo rebentar de alegria.

É então que vem “Dúia”, reconhecida na plateia logo aos primeiros acordes de guitarra e comandada pelo canto com aromas reggae e ragga de Virgul, antecedendo “Jay”, tema nostálgico e saudosista incluído no disco Podes Fugir Mas Não Te Podes Esconder (editado em 2001), a lembrar velhas guitarras e velhos tempos de garagem, os concertos de hardcore com “o people lá da rua”, as idas ao Rock Rendez Vous com thrash a tocar, versos a dar esperança a quem acredita em mais concertos vindouros (quem diria que iríamos chegar aqui? / ainda há tanto para curtir) e palavras perfeitas para este dia de regresso:

Mudaram os tempos, mas não mudaram as vontades
O feeling é o mesmo, só diferem as idades

Avança-se então para “Carrossel” e o coração recua logo às primeiras palavras de Pacman, que se encavalitam irresistivelmente umas nas outras (andar de carrossel às seis da manhã pode mudar a tua vida sem mais nem menos), antes da popularíssima “Dialectos de Ternura” e da agressividade torrencial de “Bomboca (Morde a bala)”, antes mesmo de Pacman agradecer com a simplicidade de sempre: “Que maravilha — obrigado Alive, obrigado Lisboa, obrigado tuga, porra”.

A banda manteve-se em Re-Definições, talvez o álbum mais transversal dos Da Weasel (vemo-lo melhor agora que a poeira assentou), e seguiu da “Bomboca” para “GTA” e “Casa — vem fazer de conta”, este último o momento mais anticlímax do concerto, com Manel Cruz (que atuaria poucas horas depois noutro palco) ausente e a sua cara a entoar nos ecrãs a versão registada em estúdio.

Ouviu-se então uma passagem pelo último álbum de Da Weasel, Amor, Escárnio e Maldizer, de 2007, com os temas “Mundos Mudos” e “Niggaz”, e as canções prosseguem: “Ragga Airlines” de 3º Capítulo, com Virgul em grande destaque, “Outro Nível” e “Pedaço de Arte”, até que se chegou a uma “Re-tratamento” cantada a plenos pulmões por dezenas de milhares de almas.

A nostalgia é um fator que não pode ser subvalorizado, as relações emocionais também e em palco nada disto soa datado, nada disto soa bafiento. Entre a guitarra de Quaresma, o baixo de Jay e a bateria de Guilhaz, entre as rimas e o flow inconfundível de Pacman e o canto e a presença em palco de Virgul (permanentemente em movimento, constantemente a puxar pelo público), os Da Weasel cristalizaram um som que se propagava como pólvora, com um pé no rock (ora pesado ora com groove) e as mãos a segurar o microfone rap. Mas não é de matemática que se trata: cada canção dos Da Weasel traz a bagagem de viagens de carro, memórias de infância e adolescência, cada um com as suas.

Com as expressões “5-30” (nome do seu projeto musical com Regula e Fred Pinto Ferreira) e “Almada” tatuadas no braço, Pacman ia sorrindo, aproximando-se de Quaresma para lhe cantar e nos cantar “Bora Lá Fazer a Puta da Revolução”. Em “Toque Toque”, a arrancar com aquela batida e percussão inconfundíveis, as palavras disparadas a velocidade estonteante falharam-lhe, a banda seguia a sorrir do prego que foi o esquecimento e o MC veio para junto do público, antes de voltar ao palco para ensaiar uns passos de dança junto a Virgul.

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É a voz de “Dúia” que reconhece depois que o concerto estava a ter “alguns pregos, é verdade”, mas na plateia ninguém parecia interessado em exigir perfeição, a relação emocional com as canções era demasiado forte, a felicidade por ser possível ouvir isto outra vez ao vivo e em 2022 não deu espaço ao ouvido clínico para o erro. Mas Virgul ainda nos diz que há “responsabilidades acrescidas” com este concerto: “Temos cá os nossos filhos, que não existiam antes” e estavam a ver Da Weasel pela primeira vez.

O final permite um regresso dos Da Weasel à eletricidade e ao som abrasivo, primeiro “Adivinha Quem Voltou” e “God Bless Johnny”, resgatadas ao primeiro álbum, Dou-lhe com a Alma, de 1995, a fechar “Tás na Boa”.

Foi um final sem batota: o concerto não acabou com “Re-tratamento” ou “Dialectos de Ternura”, nem sequer com o açúcar do pôr-do-sol romântico na praia de “Dúia”, acabou com os Da Weasel a viajar no tempo à procura da energia e adrenalina da vida vivida a mil à hora, de palco em palco, de madrugada em madrugada. Os Da Weasel a correr já não atrás das velhas memórias, mas de emoções novas recicladas a partir das suas vidas.

Acabou tudo em palco a agradecer ao público, visivelmente emocionado, nas colunas o som do piano do antigo colaborador (já falecido) Bernardo Sassetti. Só faltou perceber o futuro. Estará a “doninha” convicta de que este concerto foi tão mágico que voltar outra vez aos palcos seria pôr em risco estas memórias? Ou ainda há estrada para andar e sorrisos para ter em conjunto e em público?

Da Weasel fecham-se em copas sobre o futuro mas preveem “o melhor concerto de sempre” da banda, no Alive