Muitas portuguesas aproveitaram o confinamento da Covid-19 para “melhorarem” a aparência como forma de terem mais sucesso numa sociedade que privilegia as mais brancas, jovens, magras e altas, segundo a coordenadora de um projeto sobre a transformação humana em Portugal.
A antropóloga Chiara Pussetti investigou nos últimos cinco anos a prática do melhoramento humano em Portugal, no âmbito do projeto “EXCEL — Em busca da Excelência”, desenvolvido por um grupo multidisciplinar de investigadores do Instituto de Ciências Sociais (ICS) e da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de Lisboa, o qual coordenou.
Investigadora convidada a mudar corpo durante trabalho sobre busca pela perfeição
Em entrevista à agência Lusa, na véspera da inauguração em Lisboa da exposição “Be fu**ing perfect — The Pursuit of Excellence”, que marca o final do projeto, e da qual também é curadora, Chiara Pussetti disse que o que mais a surpreendeu na investigação foi o facto de existirem “muito mais práticas, intervenções e possibilidades” do que imaginava.
O recurso a estas práticas é extremamente transversal, em termos de género, classe, de estatuto social, origem étnica, profissão” e muitas são as pessoas que “procuram alcançar um ideal de perfeição“.
Um recurso que aumentou “imenso” durante o confinamento imposto pela pandemia de Covid-19, o que surpreendeu a investigadora.
Tendencialmente nós pensaríamos, face a recursos curtos e a crises muito sérias, que põem até em risco a nossa vida, como foi o caso da Covid-19, que a primeira coisa que não faríamos seria enfrentar cirurgias estéticas, lipossucções, liftings… Mas os resultados mostram exatamente o contrário: durante este período de suspensão, as pessoas pensaram mais em como voltar à vida normal numa versão melhorada de si próprias”.
Dos depoimentos recolhidos, a equipa identificou três motivos para este aumento: A possibilidade de poderem ocultar a realização da prática, por estarem em casa, a tentativa de controlar o corpo, quando tudo à volta se descontrolava, e a competição inerente a estes períodos.
Nas crises, quanto menos recursos, mais as pessoas se tornam competitivas. Precisamos de nos distinguir, de ser excecionais, excelentes, maravilhosos, porque os recursos são poucos. Para alguns foi uma forma de tentar voltar à vida pós Covid com mais ferramentas para obter o sucesso”, disse.
Chiara Pussetti esclareceu: “A beleza abre portas, a beleza é poder e sempre foi. Não podemos fingir que seja uma coisa de atualmente. O que mudou presentemente é o acesso a tecnologias mais próximas, mais económicas, mais acessíveis e até mais alcançáveis do ponto de vista social“.
Se falhamos, a culpa é nossa. E, de facto, tentar ter sempre uma aparência atraente, jovem, cativante, graciosa e envelhecer também de uma forma considerada digna, o mais possível decorosa, serve para ter mais possibilidade de integração, tanto no mercado que eu chamo romântico ou matrimonial, ou nas relações pessoais, assim como para apresentar um bom cartão-de-visita do ponto de vista profissional, assim como para ter mais apreciação do ponto de vista social”, referiu.
As intervenções de estética identificadas no projeto foram sobretudo as minimamente invasivas e com um preço acessível, o famoso botox, preenchimentos, lasers. Práticas para “enganar o tempo e dar a ilusão do eternamente jovem”.
Mas também procedimentos com risco significativo, como a Mommy Makeover, a recuperação do corpo de uma mulher que acabou de ser mãe e que ocorre próximo a órgãos vitais.
Aumentaram queixas contra médicos devido a procedimentos estéticos
A antropóloga sublinhou que, sendo sobretudo as mulheres que mais recorrem a estes “melhoramentos”, os homens também têm atualmente à disposição um mercado dirigido a si, que promete um reforço da masculinidade.
Mas as diferenças são óbvias: Nos homens, o principal instrumento de sucesso social é o poder económico e não tanto a beleza, como no caso das mulheres.
“O homem procura ter um impacto na base do seu trabalho, o poder de compra que tem, o tipo de casa e o carro”, disse, indicando que “a beleza continua a ser algo mais importante para as mulheres”.
Vivemos uma sociedade prevalentemente patriarcal, machista, na qual boa parte do valor que é dado à mulher se prende com a sua idade e como seu aspeto. É por isso que se fala, por exemplo, no envelhecimento, como um duplo padrão do envelhecimento. O envelhecimento para a mulher ainda é uma perda de valor, porque há uma perda de fertilidade, de um aspeto fresco, bonito. A pele perde aquela luminosidade, enquanto para o homem é muitas vezes um elemento de charme”.
Chiara Pussetti não moraliza o recurso à intervenção estética, mas advertiu: “Ninguém deveria sentir-se estigmatizado ou ter vergonha de fazer o que quer no seu próprio corpo, mas penso sempre que, quando nos olhamos ao espelho, além do que nos caracteriza e que naquele momento consideramos defeitos — e não são defeitos, são características — temos que pensar em todo um discurso normativo sobre um corpo que é real e tentar perceber quanto deste desejo realmente é nosso e quanto é uma obrigação que sentimos para corresponder a ideais normativos, a padrões e ideais hegemónicos que não somos nós que definimos”.
E dá o exemplo da boneca Barbie, que é “alta, magra, branca, loira, de olhos claros. “Numa agência de moda, as mulheres têm de ser loiras, brancas, altas e magras, porque é o que o consumidor quer é ver, o que o cliente pede”.
A beleza é algo tão importante que as pessoas estão dispostas a gastar imenso tempo, dinheiro e a por em risco a sua própria vida, a causar muitas vezes formas de violência ao seu próprio corpo”, como “aquelas jovens que lutam para alcançar uma magreza contra a natureza, o seu corpo, que vomitam a comida que comem”, observou.
E deixa um convite: “Tudo isso é para ser pensado em conjunto e de forma crítica, para que no futuro se possam educar as novas gerações a não sentir que a própria originalidade e a própria particularidade é um defeito, por não corresponderem a uma norma da capa da revista. A capa da revista não existe, é um sonho”.
Aplicação “low cost” de botox ameaça os mais vulneráveis
Ainda quanto a procedimentos estéticos, a aplicação de toxina botulínica em cabeleireiros, por pessoas sem formação clínica, é um risco a que se sujeita quem pretende apagar as “imperfeições”, mas não tem meios para o fazer em segurança, segundo uma antropóloga que investiga estes “melhoramentos”.
Ao longo de cinco anos a equipa desta antropóloga identificou várias irregularidades, como a venda em Lisboa de cremes branqueadores da pele, com substâncias proibidas, mas também uma facilidade em encontrar quem aplique botox, sem formação para o fazer.
No nosso trabalho descobrimos que existe muito intrusismo médico, o emprego destas tecnologias injetáveis por pessoas que não são formadas para isso ou que não são médicos, que não são dermatologistas”, disse.
A antropóloga disse que é o preço “muito mais baixo” deste procedimento, quando realizado ilegalmente em cabeleireiros e consultórios dentários, que determina a sua escolha por quem pretende livrar-se das rugas.
“É um problema muito sério”, disse, referindo que também são cada vez mais as pessoas que encomendam botox pela internet e o aplicam, seguindo tutoriais e vídeos online, numa prática chamada de “Do it yourself” (DIY), com óbvios riscos para a saúde.
Atualmente vivemos numa sociedade em que podemos obter quase tudo o que queremos como um clique online. Portanto, nós podemos comprar toxina botulínica online, sem problema nenhum, para aplicar em casa. E há imensos tutoriais e vídeos no YouTube”, explicou.
Os investigadores falaram com “pessoas que recorreram a estas formas de alterar o aspeto, assim como com serviços não vocacionadas para este fim, mas que oferecem este tipo de proposta, tipo cabeleireiros”.
Quem aplica o botox nestes espaços sabe que “não o pode fazer. Qualquer tipo de intervenção, mesmo a mais banal, como um preenchimento ou uma toxina botulínica, comporta riscos”, disse.
Chiara Pussetti sublinhou que “não é difícil encontrar um estabelecimento que realiza esta prática”. “Basta frequentar mais do que uma vez um salão de cabeleireiro ou esteticista, onde as pessoas vão normalmente fazer depilação, e perguntar se conhece e num instante dizem [quem faz] ou que fazem”.
Não é uma coisa tipo o narcotráfico, que é preciso conhecer. É só falar e perguntar”, indicou.
As possibilidades financeiras determinam as escolhas nesta área: “Uma clínica na Avenida da Liberdade nunca terá o preço de uma clínica na Amadora, apesar de o tratamento ser o mesmo”.
Muitas pessoas que se dirigem a estas soluções “low cost” — como o silicone industrial, para criar curvas, e coisas que podem entrar no circuito sanguíneo e são extremamente prejudicas à saúde – vivem em situações de precariedade e vulnerabilidade económica”.
Destinam-se, pois, “a um público com baixo poder de compra. Qualquer pessoa de uma classe média, ou média alta, com um mínimo poder de compra, prefere ir ao médico e a garantia de alguém que, caso haja um problema, saiba como proporcionar uma solução, como a ajudar”.
“A disponibilidade a preço muito baixo seduz muitas pessoas. Por isso digo que a procura para a perfeição é extremamente transversal, mas seduz muitas pessoas cujo rendimento é muito baixo e no qual às vezes o aspeto, a beleza, o corpo, é o último recurso para ter alguma mobilidade profissional”.