Todos os seres humanos são, até prova em contrário, humanos. Ou seja, seres imperfeitos, falíveis, suscetíveis a tomar decisões e emitir opiniões imponderadas, questionáveis, desacertadas. Felizmente, qualquer ser humano tem as costas metaforicamente largas – errar é humano revela-se quase sempre uma desculpa muitíssimo eficaz, bem tolerada e de ação rápida, sobretudo quando usada em cocktail com um xarope de humildade.

Mas as desculpas evitam-se e a melhor forma de evitar desculpas, não podendo evitar o erro, será errar em causa própria. É por isso que não condeno as pessoas que vejo a entrar desacompanhadas na Gelataria Itália, vulgo Conchanata, número 28A da Avenida da Igreja, em Lisboa. Estão a cometer um erro, é verdade, crasso acrescentaria até, mas estão a fazê-lo de forma solitária, sem causar dano a terceiros. Vão ser destratados ao balcão para comer um gelado que sabe a diabetes, na pior das hipóteses mergulhado numa calda de morango tão natural como o arquipélago do Dubai.

Já quando arrastam consigo os cônjuges, a descendência e/ou um grupo de amigos próximos, o ato ganha outros contornos de gravidade. Não só estão a impôr a supracitada mistela às papilas gustativas de outrém, como estão a contribuir de forma mais evidente para a fila – bicha, para muitos locais – que ali se forma com frequência e, consequentemente, para perpetuar uma mentira com mais de meio século: a de que a Conchanata se trata de uma das melhores gelatarias da cidade. Pior que fazê-lo é fazê-lo e, logo após a primeira colherada, propagar pela companhia a mensagem de que se trata de um produto excecional, com perguntas de retórica que não permitem uma resposta sincera, como isto é ‘muita’ bom, não é?, desvalorizando a rudeza do atendimento com um é mesmo assim faz parte da experiência, os gajos são uns castiços.

Não é. Não faz. Não são.

Será isto um episódio de histeria coletiva não diagnosticada? Um transtorno psicológico semelhante ao Síndrome de Estocolmo partilhado por um largo número de lisboetas? Ou será apenas falta de gosto? A Avenida da Igreja é, vá-se lá saber porquê, propensa a estes fenómenos. No número 25D existe uma churrasqueira chamada Rio de Mel onde também se geram frequentes aglomerações de clientes que garantem que se leva dali um frango sem rival na cidade. É tão discrepante a popularidade daquela churrasqueira em relação às vizinhas, que uma delas fechou recentemente e a outra só se aguenta porque ainda há quem tenha o bom senso de, primeiro, comer pela sua própria boca; segundo, de pensar pela própria cabeça; terceiro, de perceber que eventuais diferenças na confeção, a existirem, não justificam o alarido.

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O que se justifica, porém, é este relambório, mesmo que mais não sirva do que para introduzir uma boa-nova. Abriu há uns meses uma nova gelataria na Avenida da Igreja. Chama-se Mari Gelato e fica em frente à Conchanata, com vista mais ou menos desafogada para a agora rival, dependendo da quantidade de carros em segunda fila, que aqui por vezes estacionam até paralelos a lugares vagos, outro fenómeno da Avenida da Igreja. Ainda assim, em dias bons é um excelente miradouro para a desgraça. Quero pensar que a localização – a de uma antiga boutique de roupa interior de bairro, daquelas que ainda empregam a palavra “ceroula” – foi escolhida de forma cirúrgica. Que foi um desplante propositado. Uma afronta. Uma provocação. Por outras palavras, uma benção.

Quando me estreei na Mari coloquei a fasquia propositadamente baixa. Bastava que os seus funcionários não me tratassem com enfado. Que não condenassem uma eventual indecisão na escolha de sabores. Que o interior não tivesse aspeto e iluminação de cantina prisional. Que o gelado não soubesse apenas remotamente ao que se anunciava.

Correu bem.

Atendimento simpático e eficiente – sugeriram-me que recheasse o cone com chocolate amargo, de forma a recriar a capa interior celebrizada pelo Cornetto, como que adivinhando o apreço que ainda hoje sinto por essa maldita criação da Unilever. Espaço agradável, luminoso, totalmente aberto para a rua, com cadeiras no interior e exterior em número ajustado à procura. Boa variedade na oferta e, imagine-se, nas possibilidades de pagamento. Ah, a modernidade.

O gelado, em si, não traz mácula à tradição italiana na matéria que o nome Mari Gelato denuncia ou se pretende apropriar. O sorvete de chocolate, por exemplo, é levíssimo. O caramelo salgado ativa, como dele se espera, as glândulas salivares. O tiramisù é uma boa surpresa, pese alguns torrões congelados pelo meio. Os de fruta sabem, de facto, a fruta.

À simpatia do serviço, à limpeza do espaço e à evidente qualidade do produto, soma-se um outro ponto não menos relevante: a Mari possibilita observar em primeira mão a maralha na Conchanata, antes e depois do erro capital, despertando essa visão uma estranha mas sincera alegria, do mesmo tipo da despertada pelos vídeos de cães e bebés a provar limão e dos seus donos e pais a escorregar no gelo ou no chão da cozinha. Os alemães chamam-lhe schadenfreude. Mas talvez seja só ser humano.

George Gabriel nunca apresentou um programa de variedades. Considerem-no, antes, um artista de variedades: ilusionista amador, numismata, praticante de fascinação hipnótica. Também há quem lhe elogie as almôndegas. Sustenta os seus vícios com diversos ofícios, nenhum deles tão útil a terceiros como o de Experimentador Implacável.