A linha do tempo que culminou nas últimas horas nos intensos protestos que ameaçam o poder de Benjamin Netanyahu começa a 29 de dezembro. Foi nesse dia que o primeiro-ministro tomou posse à frente de Israel, numa coligação governamental que juntou seis partidos — os mesmos que, agora, colocam Netanyahu entre a espada e a parede: ou as polémicas reformas judiciais avançam ou o governo cai.

Em causa estão três projetos de lei que esvaziam o poder judicial e colocam os tribunais sob o controlo do governo liderado por Netanyahu. Todas as propostas, que foram aprovadas no Parlamento há duas semanas, foram talhadas para permitir a entrada no governo de personalidades políticas condenadas por crimes fiscais e para controlar as deliberações judiciais.

Após semanas de tensão à conta das reformas judiciais, a demissão de um membro do governo que admitiu estar contra as alterações foi a gota de água que levou a maior estrutura sindical a chamar dezenas de milhares de pessoas às ruas. As estimativas de ontem à noite apontavam que 200 mil pessoas saíram às ruas para se manifestarem contra as reformas. O clima de tensão só tem adensado nas últimas horas.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a situação em Israel.

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O que se passa em Israel e que consequências poderá ter?

O que se passa em Israel?

Dezenas de milhares de pessoas têm saído à rua desde há 12 semanas em protestos contra uma reforma judicial que o governo liderado por Benjamin Netanyahu tentou impor em Israel. As últimas estimativas indicam que 200 mil pessoas saíram às ruas na noite de domingo — a mais intensa nas últimas semanas e das mais significativas de sempre.

Os protestos seguiram madrugada dentro e continuam a longo desta segunda-feira. Mas a crise por detrás deles já tem 12 semanas e remonta a 4 de janeiro, seis dias depois de Benjamin Netanyahu ter tomado posse. Nesse dia, o governo anunciou um plano para fortalecer o poder do governo sobre o Supremo Tribunal, dando-lhe mais capacidade para decidir quem faria parte do poder judicial.

Esther Hayut, presidente do Supremo Tribunal de Israel, reagiu em meados de janeiro, avisando que as propostas em cima da mesa iriam prejudicar a democracia e impedir o sistema judicial de funcionar. Os protestos começaram a 14 de janeiro e intensificaram-se sobretudo desde meados de março.

Cavalaria nas ruas, bandeiras desfraldadas e canhões de água. As imagens dos protestos que obrigam Netanyahu a recuar nas reformas judiciais

O que diz a proposta de Benjamin Netanyahu?

A 13 de março, o Parlamento israelita (Knesset) aprovou três projetos de lei que aumentaram os poderes do governo israelita e permitiam ao poder executivo obter um maior — e quase total — controlo sobre o poder judicial.

Um dos projetos de lei estipula que os ministros (incluindo o primeiro-ministro) de Israel só podem ser considerados inaptos para o cargo por incapacidade física ou mental. Esta tem de ser atestada pelo próprio primeiro-ministro ou por declaração de três quartos do governo. Caso o líder do governo não submeta a decisão ao executivo, o primeiro-ministro só pode ser retirado do cargo se a demissão for aprovada por 90 deputados.

Outro projeto de lei determina que o Knesset pode anular uma decisão do Supremo Tribunal por maioria simples — basta que 61 dos 120 deputados deem luz verde para que uma deliberação dos juízes do Supremo seja derrubada. No entanto, para uma decisão do executivo ser chumbada, é necessária uma maioria absoluta: uma resolução do governo só poderia ser travada com a concordância de 12 dos 15 juízes.

O terceiro projeto de lei permite que os deputados promulguem leis, mesmo que elas tenham parecer negativo dos tribunais. O documento também indica que nenhuma lei aprovada no Knesset por uma maioria simples de deputados necessita de sofrer uma revisão judicial pelo tribunal. É uma emenda à Lei Básica do Poder Judicial.

Todas estas propostas, que ainda têm de ser votadas mais duas vezes no Parlamento para serem instituídas, vão ao encontro dos interesses do governo — uma coligação entre o partido de Benjamin Netanyahu (Likud) com o Judaísmo Unido da Torá, Shas, Partido Religioso Zionista, Otzma Yehudit e o Noam.

O primeiro projeto de lei permite que Aryeh Deri, líder do Shas, possa integrar o governo como ministro, apesar de ter sido condenado à prisão por crimes fiscais. Isto contrariaria uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal em janeiro, que anunciou que Aryeh Deri não podia ser governante por causa dessas condenações. O líder do Shas acabou por ser demitido do executivo.

O segundo projeto de lei significaria que Itamar Ben-Gvir, líder do Otzma Yehudit, obtenha mais poder sobre as autoridades policiais num próximo governo, enquanto ministro da segurança nacional. Omer Barlev, ex-ministro da segurança nacional e ex-deputado do Knesset pelo Partido Trabalhista, avisou que esta nova medida transformaria Israel num “estado policial”.

O terceiro projeto de lei daria entrada a Bezalel Smotrich, que chefia o Partido Religioso Zionista, ao cargo de ministro da Defesa, garantindo-lhe a liderança da Administração Civil, que lidera a Cisjordância. Isto pode implicar uma maior dificuldade dos palestinianos, e das minorias tanto em Israel como na referida região ocupada, em assegurar o cumprimento dos direitos civis no país.

Porque é que as manifestações estão a ser tão intensas?

A gota de água foi a demissão do ministro da Defesa, Yoav Galant, que foi o primeiro governante afeto a Benjamin Netanyahu a manifestar-se contra as reformas judiciais propostas pelo primeiro-ministro. No sábado, Yoav Galant tweetou que não ia ser “conivente” com as propostas de Netanyahu: “Este é um perigo claro, imediato e tangível para a segurança do Estado”.

“Nos últimos dias e semanas, apresentei a situação de segurança, fundamentada e esclarecida. Para o bem da segurança de Israel, para o bem de nossos filhos e filhas: neste momento, devemos interromper o processo legislativo e buscar negociações”, apelou o então ministro da Defesa. No domingo de manhã, poucas horas depois da publicação desta mensagem, Netanyahu afastou Yoav Galant.

Foi então que a Histadrut (Organização Geral dos Trabalhadores de Israel) convocou os protestos em massa que saíram à rua no domingo. Esta é a principal estrutura sindical do país e uma das principais instituições de Israel, que já foi liderada pelo ex-ministro da Defesa israelita Amir Peretz. O peso político da Histadrut brota do facto de ter sido um importante pólo da evolução económica de Israel.

Esse peso mantém-se até hoje: a Histadrut ameaçou que, se as reformas judiciais não forem suspensas, iria convocar greves gerais. Essa iniciativa podia causar sérios danos à economia israelita, uma vez que o sindicato representa mais de 700 mil trabalhadores em diversas áreas de atividade.

O próprio Presidente de Israel já se manifestou, pedindo a Benjamin Netanyahu que volte atrás nas reformas judiciais. Isaac Herzog escreveu no Twitter: “Pelo bem da unidade do povo de Israel, pelo bem da responsabilidade, peço que se interrompa o processo legislativo imediatamente.”

“Os sentimentos são difíceis e dolorosos. Uma profunda preocupação envolve toda a nação. Segurança, economia, sociedade — todos estão ameaçados. Os olhos de todo o povo de Israel estão voltados para vós. Os olhos de todo o povo judeu estão em vós. Os olhos do mundo inteiro estão em vós”, pode ler-se na rede social.

E prosseguiu: “Apelo aos chefes de todas as fações do Knesset, coligação e oposição, para colocar os cidadãos do país acima de tudo e agir com responsabilidade e coragem sem demora”. “Este não é um momento político, é um momento de liderança e responsabilidade“, disse o Presidente de Israel.

Que impacto estão a ter, no país e fora dele?

Todas as partidas no Aeroporto Internacional Ben-Gurion, em Tel Aviv, foram suspensas desde que um grupo de manifestantes entrou nas instalações na noite passada. Os dois maiores portos israelitas — Haifa no norte e Ashdod a sul — estão paralisados. Os arredores do parlamento israelita voltaram a ser ocupados pelos protestos, com ações planeadas ao longo de toda a tarde e já desde as 14h desta segunda-feira. Também há protestos a decorrer junto ao Supremo Tribunal.

Sem indicações concretas por parte do primeiro-ministro sobre que decisão vai tomar em relação às reformas judiciais, a Histadrut decidiu convocar greves gerais. Há milhares de pessoas a dirigirem-se de comboio para Jerusalém, capital de Israel, para participarem nos protestos em frente ao Knesset. A principal estrada de Tel Aviv, que tinha ficado paralisada esta noite mas onde os protestos foram dispersos durante a madrugada, voltou a ficar bloqueada.

Os impactos dos protestos contra as reformas judiciais já chegaram à comunidade internacional, incluindo a Portugal, onde a embaixada israelita foi encerrada. O Ministério dos Negócios Estrangeiros enviou indicações aos diplomatas em todo o mundo para entrarem em greve. A administração interna também também está a ordenar o encerramento de escolas pré-primárias e outros serviços público. Um sindicato dos médicos também apelou aos seus membros para entrarem em greve.

O que vai o primeiro-ministro fazer agora?

Estava agendada para esta segunda-feira às 10h30 de Lisboa a transmissão de declarações gravadas por Benjamin Netanyahu na comunicação social israelita, mas o governo recuou. Depois disso, a imprensa nacional avançou que o líder do governo estaria prestes a anunciar a suspensão das reformas judiciais na origem da onda de protestos dos últimos dias.

Entretanto, Benjamin Netanyahu publicou um tweet: “Apelo a todos os manifestantes em Jerusalém, à direita e à esquerda, para se comportarem com responsabilidade e não agirem com violência. Somos pessoas fraternas.” A mensagem surgiu depois de Itamar Ben-Gvir, líder da Otzma Yehudit, que faz parte da coligação, ter anunciado contra-protestos da extrema-direita para esta tarde.

Até agora, ainda não tinha havido declarações oficiais por parte de Benjamin Netanyahu, nem do seu partido. Mas Itamar Ben-Gvir contrariou os apelos do ministro da Defesa cessante e do Presidente da República: num tweet publicado esta manhã, o líder partidário pediu ao governante israelita: “Não nos devemos render à anarquia”. “A reforma da justiça não deve parar”, considerou.

De acordo com o Times of Israel, Itamar Ben-Gvir terá ameaçado Benjamin Netanyahu que, se o primeiro-ministro não prosseguir com as reformas judiciais, o líder da Otzma Yehudit abandonará o governo de coligação e colocará em xeque o poder do primeiro-ministro.

O ministro da Justiça, Yariv Levin, do mesmo partido que Benjamin Netanyahu, continua fiel ao primeiro-ministro. Em comunicado lançado esta segunda-feira afirmou que respeitaria qualquer decisão em relação às reformas judiciais: “Uma situação em que todos fazem o que querem pode provocar a queda instantânea do governo e o colapso do Likud. Todos devem esforçar-se para estabilizar o governo e a coligação”.

Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, também já veio defender que as reformas judiciais devem avançar. Num vídeo publicado nas redes sociais, citado pelo The Guardian, o governante — que afirmou no passado que o povo palestiniano “não existia” e que uma cidade palestiniana devia ser “eliminada” — considerou que as alterações vão “corrigir o sistema judicial” e “melhorar a democracia”.