Cláudia Pazos Alonso, professora de Literatura Portuguesa e Estudos do Género na Universidade de Oxford, em Inglaterra, vai doar à Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) um caderno manuscrito de Judith Teixeira que adquiriu em 1997 num alfarrabista em Lisboa. A doação acontece numa altura em que se celebram os 100 anos da publicação da primeira coletânea de poemas da escritora modernista, Decadência, e do escândalo da “Literatura de Sodoma”, que teve como principais intervenientes Fernando Pessoa e Raul Leal.
A doação será oficializada esta quarta-feira à tarde, numa cerimónia no Auditório da BNP, durante a qual decorrerá uma conversa entre a professora e investigadora e Fabio Mario da Silva, professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), no nordeste do Brasil, e investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) e do Centro de Estudos Clássicos (CEC) da Universidade de Lisboa. Os dois professores foram responsáveis pela publicação de um volume de poesia e prosa de Judith Teixeira em 2015, que incluiu os poemas do manuscrito. O livro encontra-se esgotado, mas fonte da editora confirmou ao Observador que terá uma nova edição este ano, sem, porém, adiantar datas. Pazos Alonso e Silva publicaram, também em conjunto, as obras completas de Florbela Espanca.
Ficcionista e poeta, Judith Teixeira nasceu em Viseu em 1888 e morreu em Lisboa em 1959. Foi uma das raras escritoras modernistas portuguesas com presença pública e uma das poucas mulheres a criar e dirigir uma publicação periódica em Portugal na primeira metade do século XX, a revista Europa, que teve três números entre abril e junho de 1925. Teixeira colaborou com outras publicações literárias, nomeadamente com a revista Contemporânea, dirigida pelo artista gráfico José Pacheco, e com jornais, como o Diário de Lisboa, onde deu a conhecer vários textos e poemas, alguns dos quais assinados com o pseudónimo Lena de Valois. Entre 1923, quando se deu a conhecer com Decadência, e 1927, quando lançou Satânica, o seu único livro de ficção, Teixeira publicou outros dois livros de poesia, uma nova edição da obra de estreia e proferiu uma conferência, De Mim, em que defendeu a sua identidade artística. Sabe-se que teve intenções de lançar, pelo menos, mais quatro obras, cujos respetivos manuscritos nunca foram localizados: Labaredas (drama em três atos), Taça de Brasas (poesia), Sulcos e Novelas (ficção curta).
A escritora ”desavergonhada”, como lhe chamou Marcelo Caetano em 1926, foi um dos alvos da “ação moralizadora” promovida nos primeiros meses de 1923 pela Liga de Ação de Estudantes de Lisboa, liderada por Pedro Teotónio Pereira, futuro ministro de Salazar, contra a chamada “Literatura de Sodoma”, um termo cunhado pelo jornalista conservador Álvaro Maia num texto que serviu de resposta ao ensaio “António Botto e o Ideal Estético em Portugal”, de Fernando Pessoa. A polémica resultou na apreensão e destruição, no início de março, de diversos “livros torpes”, incluindo a segunda edição muito aumentada de Canções, de António Botto, Sodoma Divinizada, de Raul Leal, e Decadência. Na sequência desta, Teixeira foi menosprezada enquanto autora e considerada “um talento poético prostituído [que] faz gala da miséria repugnante” pelo jornal conservador A Época, que se colocou ao lado dos estudantes.
No “ensaio introdutório” do volume de poesia e prosa de Judith Teixeira publicado pela Dom Quixote, Pazos Alonso lembrou que Decadência saiu na mesma altura que Livro de “Soror Saudade”, a segunda coleção de poemas de Florbela Espanca. Mas, ao contrário de Decadência, Livro de “Soror Saudade” escapou à censura do Governo Civil de Lisboa e à fúria dos estudantes universitários, “apesar de também desafiar preconceitos vigentes acerca da sexualidade feminina”. A professora e investigadora sugeriu que isso se deveu ao facto de o livro de Espanca parecer menos ameaçador “para as normais sociais instituídas do que a representação do desejo de cariz homossexual verbalizado por Judith Teixeira”. Na opinião da especialista, a marginalização da escritora deve-se ao “facto de sua poesia conter um subtexto lésbico nem sempre disfarçado”.
Por outro lado, Teixeira alinhava-se com o movimento modernista e, nas suas obras, “podemos encontrar laivos de um certo feminismo”. “Lembremo-nos que tais movimentos vão na contramão do conservadorismo do começo do século XX em Portugal”, apontou o professor da UFRPE na edição da Dom Quixote, destacando que “tanto as conferências como as novelas desta autora apresentam um conflito operado entre a sociedade e as ideias libertárias futuras”. “Do mesmo modo, aí são representadas noções referentes ao feminismo — um tanto atrasado em Portugal em relação ao mundo anglo-americano e francês — através da construção de personagens que (…) representam a tipificação de mulheres que procuram não se submeter aos ditames sociais (dos homens), gerando uma série de conflitos que fazem o leitor repensar o papel da mulher na sociedade do começo do século XX.”
Um caderno em couro cor de vinho
A história de como a professora de Literatura Portuguesa e Estudos do Género na Universidade de Oxford descobriu e adquiriu o caderno manuscrito e também os dois exemplares dactilografados da conferência Da Saudade, que a partir desta quarta-feira passarão a fazer parte da coleção da BNP, está contada no volume da Dom Quixote, que reproduz toda a obra literária de Teixeira conhecida até à data com exceção de alguns textos curtos publicados na imprensa. No estudo “Um caderno com poemas inéditos de Judith Teixeira”, Cláudia Pazos Alonso relata como, numa visita à Livraria Histórica e Ultramarina, em Lisboa, o dono, José Maria Costa e Silva, lhe mostrou “um caderno com poemas manuscritos de Judith Teixeira” com “várias folhas soltas do que se revelou ser dois exemplares de uma conferência datilografada, Da Saudade, e um poema esparso, ‘Porque choro eu?!’”.
Pazos Alonso descreve a forma e conteúdo do caderno comprado em 1997 na Ultramarina, “encadernado em couro cor de vinho” que refere, tanto na capa como na primeira página, o título, a assinatura da autora e a data em que foi produzido, 1922. O volume contém 52 poemas, incluindo os que foram publicados em Decadência, mas numa outra ordem, e quatro poemas que foram integrados em Castelo de Sombras, a segunda coletânea da autora, publicada também em 1923. Os textos que foram selecionados para integrarem os dois livros foram assinalados por Teixeira com uma cruz.
O caderno inclui outros 14 poemas a tinta, dos quais apenas um, “Quero-te Bem”, foi publicado. Os restantes estavam inéditos até à data da publicação do volume de prosa e poesia. Um deles é dedicado a Botto (“Ao Meu Amigo António Botto”). Um outro, “Porque Choro Eu?!”, estava escrito em duas folhas soltas. “Entre a penúltima e a última linha, lê-se a seguinte adição a lápis: ‘Ninguém a desejou’.” O caderno cor de vinho tem ainda sete poemas a lápis, alguns dos quais incompletos. “Estes últimos são claramente rascunhos, que parecem ter sido escrevinhados rapidamente, com muitas palavras (ou até mesmo às vezes linhas inteiras) depois riscadas”, apontou a professora e investigadora.
As duas cópias dactilografadas da conferência Da Saudade que foram encontradas no interior do caderno por Pazos Alonso estão ambas assinadas por Teixeira e têm várias emendas feita pela autora, que mudam de uma cópia para a outra, o que, como apontado foi por Fabio Mario da Silva, que coordenou o volume da Dom Quixote juntamente com a académica, demonstram “a preocupação” da ficcionista e poeta com “o apuramento final do texto”. Na nota sobre Da Saudade, o académico datou a produção do texto do período de 1922 a 1925, porque “o caderno de poemas manuscritos”, onde as duas cópias foram descobertas, “tem por data 1922”. Além disso, na lista de obras a publicar incluída em Castelo de Sombras, “há uma intitulada Conferências de Arte”. “O conteúdo é uma rejeição da saudade que é, naturalmente, ainda invulgar para o período, mas não é tão escandaloso quanto a posterior palestra intitulada De Mim, publicada em 1926, visto ser esta a teorização das ideias defendidas por Judith Teixeira”, apontou ainda o professor e investigador.
O texto publicado no site da BNP sobre a sessão desta quarta-feira destaca a grande “importância” do caderno de manuscritos “para o entendimento dos princípios que nortearam a organização” da obra de estreia de Teixeira, “a malfadada Decadência”, especificando que, a partir deste, é possível “acompanhar as mudanças fascinantes e os significativos aperfeiçoamentos feitos à sua obra, bem como conhecer catorze poemas que não chegaram a ser publicados” em livro. “Estamos, pois, perante materiais imprescindíveis para acompanhar a pré-história de uma das autoras mais radicais, publicada nos anos 20 em Portugal.”
Celebrar Judith Teixeira e os 100 anos de Decadência no Brasil
A doação de Cláudia Pazos Alonso numa altura em que se comemoram os 100 anos da publicação de Decadência e do escândalo da “Literatura de Sodoma”, descrito pelo historiador e filósofo Josué Pinharanda Gomes como o “maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal”. A data tem passado despercebida em Portugal, mas existem várias iniciativas agendadas ao longo do ano no Brasil, graças aos esforços de académicos como Fabio Mario da Silva, que está neste momento a concluir um estudo alargado sobre a autora, ao mesmo tempo que prepara uma edição brasileira das obras completas de Florbela Espanca para sair nos próximos meses. Judith Teixeira: múltiplos olhares deverá ser publicado no final deste ano pela editora da UFRPE.
Em junho, será publicada uma edição especial da revista Via Atlântica da Universidade de São Paulo dedicada aos 100 anos da “Literatura de Sodoma” e à literatura queer lusa-brasileira, com coordenação dos professores Fabio Mario da Silva e Mário César Lugarinho. Um mês depois, sairá uma edição, também especial, da revista Entheoria da UFRPE sobre Judith Teixeira, que incluirá textos de investigadores de Portugal, Brasil, Estados Unidos da América, França e Reino Unido.
Não foram anunciadas quaisquer iniciativas em Portugal.